segunda-feira, 25 de junho de 2012

Koppdelaney
“Uma única coisa é necessária: a solidão.
A grande solidão interior.
Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas;
é a isso que é preciso chegar.
Estar só, como a criança está só.”
Rainer Maria Rilke


" A educação deve ter duas finalidades: primeira, propiciar conhecimento definido,
ler e escrever, linguagem e matemática, e assim por diante;
segunda, criar os hábitos mentais que permitirão às pessoas adquirirem conhecimento
e formarem por si mesmas opiniões sadias.
À primeira podemos chamar informação, à segunda inteligência.
Contudo, deparamo-nos com o fato paradoxal de a educação haver-se tornado
um dos principais obstáculos à inteligência e à liberdade de pensamento.
Isto se deve primeiramente ao fato de o Estado exercer o monopólio;
mas não é a causa única."


Bertrand Russell


Igor Gorin

Utopia

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias
como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silencio
ainda que o seja
como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada
como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor
esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos
como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia.


MARIO BENEDETTI

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Balthus
Os cães são o nosso elo com o Paraíso. Eles não conhecem a maldade,
a inveja ou o descontentamento.
Sentar-se com um cão ao pé de uma colina numa
linda tarde é voltar ao Éden,
onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz.
 
 
 
Milan Kundera
.
Robert Hubert
"Não sou nenhum bicho-papão, nenhum monstro moral - sou até mesmo uma natureza
oposta à espécie de homem que até agora se venerou como virtuosa.
Cá entre nós, parece-me que justamente isso forma parte de meu orgulho.
Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo.
Mas leia-se este escrito. Talvez eu o tenha conseguido, talvez não tenha ele outro
sentido senão expressar essa oposição de maneira feliz e afável.
A última coisa que eu prometeria seria "melhorar" a humanidade. Eu não construo novos ídolos;
os velhos que aprendem o que significa ter pés de barro.
Derrubar ídolos (minha palavra para ideais) - isto sim é meu ofício.
A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que
se forjou um mundo ideal... O "mundo verdadeiro" e o "mundo aparente" - leia-se:
o mundo forjado e a realidade...
A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade
tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos -
a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam
o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro."


Friedrich Nietzche -  Ecce Homo: como alguém se torna o que é.

Igual-Desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
[coisa.

Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 20 de junho de 2012


"(...) Procuro despir-me do que aprendi,
procuro esquecer-me do modo
de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram
os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu..."


FERNANDO PESSOA




" Se sonhássemos todas as noites a mesma coisa, isso nos afetaria
tanto como os objetos que vemos todos os dias. E, se um artista
estivesse seguro de sonhar todas as noites, durante 12 horas, que é um rei,
creio que seria quase tão feliz como um rei que sonhasse, todas as noites,
durante 12 horas, que era um artista... Mas, porque os sonhos são todos
diferentes, e porque mesmo um se diversifica, o que se vê neles afeta
bem menos que o que se vê acordado, por causa da continuidade,
que não é contudo tão contínua e igual que não mude também, mas menos
bruscamente, a não ser raramente, como quando se viaja; e então diz-me:
" parece-me que sonho"; pois a vida é um sonho pouco menos inconstante."


BLAISE PASCAL

NÃO MAIS

Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs

De Veneza, como incitam com uma vareta o
  pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se
  abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das
  galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus
  pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe
  o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro
  pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera
pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.


CZESLAW MILOSZ

segunda-feira, 18 de junho de 2012

René Magritte
" Meu corpo não tem as mesmas ideias que eu."


Roland Barthes

"Texto é toda a escrita de nível artístico, ou não, recheado de conteúdos capazes de desafiar a curiosidade do saber. Segundo Barthes, "texto do prazer seria aquele que enche, satisfaz, contenta e dá euforia". É um texto que se radica na subjetividade do leitor. Entre juízos sociais de valor e preferências de sentido, o livro será bom ou mau. O leitor caminha como caminha por entre a floresta, onde a sombra é boa enquanto o transeunte a procura para fugir do sol e é ruim quando o transeunte foge dela saturado, procurando o sol. Há livros que nascem em nossa cultura. Outros que vêm de outras culturas e nos transmitem dados e informações prazerosas. A capacidade que um leitor tem de atender a vários horizontes de dentro e de fora, tornam o leitor mais maduro em seus juízos de valor. Todo o prazer do texto está nessa vontade de ter um espaço da linguagem onde uma pessoa se encontra apenas com os signos e pode desenvolvê-los navegando em seu imaginário e enriquecendo os dados que lhe são apresentados. O texto é sempre muito mais do que unm diálogo simples. Ele é uma polifonia. Várias vozes, vários sentidos, vários caminhos e viagens múltiplas podemos fazer pelos espaços infinitos da fantasia e da imaginação...O leitor é rei em sua intimidade e em seu prazer...Única testemunha de seus roteiros... "O meu prazer pode tomar a forma de uma excursão", diz Roland Barthes. E o melhor da excursão é quando eu formalmente integrado no todo consigo libertar-me do todo, sem me deixar arrastar, curtindo minhas seduções, minhas visões, minhas experiências... O texto é meu barco de navegação...no social, no indiidual, no inenarrável fantasmagórico, com todos os roteiros de avebntura e de prazer.
Na expressão de Barthes, tanto existe o prazer do texto como o texto do prazer...Duas expressões reversíveis mas ambíguas. Na prática, acho que deverá ser o leitor qu buscará o sentido delas. Ao falarmos de prazer podemos trabalhar com dois elementos que o constituem : o contamento e a fruição. Tem prazer quem sente o contentamento íntimo e quem goza ou frui. Mas quem goza ou frui entra num estado de sensação liminar, de sensação progressiva, de clímax, de sensação globalizante e às vezes, na fruição dos sentidos, de auto-desvanecimento, ou como diria, Barthes, de desfalecimento. "

JOÃO FERREIRA

Pierre Louis Gatier
Dois corpos frente a frente
são às vezes duas ondas
e a noite oceano.

Dois corpos frente a frente

são às vezes duas pedras
e a noite deserto.

Dois corpos frente a frente

são às vezes raízes
à noite enlaçadas.

Dois corpos frente a frente

são às vezes navalhas
e a noite relâmpago.


OCTAVIO PAZ


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Yuri Fomichev
Autodidata é o ignorante por conta própria.


MARIO QUINTANA
Victor Higgins
" O diálogo é a conversa perfeita, porque tudo o que uma
pessoa diz recebe a sua cor definida, seu tom, seu gesto
de acompanhamento, em estrita referência àquele com
quem se fala. No diálogo há uma única refração do
pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, como o
espelho no qual desejamos ver nossos pensamentos
refletidos do modo mais belo possível.
Mas como se dá com dois, tres ou mais interlocutores?

A conversa perde necessariamente a delicadeza individualizadora,
as várias referências se cruzam e se anulam; o que agrada a um
não satisfaz a índole do outro. Por isso o individuo é forçado,
lidando com muitos, a apresentar os fatos como são, tirando dos
assuntos o lúdico ar de humanidade que faz da conversa uma das
coisas mais agradáveis do mundo.
Ouça-se o tom em que os homens que lidam com grupos inteiros
de homens costumam falar, é como se o teor de todo o discurso
fosse: este sou Eu, isto seu Eu que digo, pensem disso o que
quiserem. Falar com muitos priva os homens de toda amabilidade
de espírito, e, apenas mostra, numa luz crua, a consciente
preocupação de si mesmo, a tática e a intenção de uma vitória pública."


NIETZSCHE
Paul Cezanne
A Confissão de um Vagabundo


Nem todos sabem cantar
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.
Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.
Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.
Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.
Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O seu melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.
Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de nooiva.
Amo a terra.
Amo demais a minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos nos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?
E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.
Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.
Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.
Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Págaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos,
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.
Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.


Siérguei Iessiênin

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Erik van Ommen
" Descobrir quais regras e arranjos sociais são moralmente melhores
e quais são piores, é um processo investigativo não menos falível
do que a descoberta das leis da Física."


WILLIAM JAMES
Marina Grigoryan
"Descobrirás que não és a primeira pessoa a quem o comportamento humano alguma
vez perturbou, assustou ou mesmo enojou. Não estás de modo nenhum sozinho
nesse ponto, e isso deve servir-te de incitamento e de estímulo.
Muitos, muitos homens se sentiram tão perturbados, moralmente e espiritualmente,
como tu estás agora. Felizmente, alguns deles deixaram memórias dessa perturbação.
Hás-de aprender com eles... se quiseres aprender.
Tal como um dia, se tiveres alguma coisa para dar, alguém há-de aprender contigo.
É um belo tratado de reciprocidade. E isto não é instrução. É história. É poesia.

(...) Não estou a tentar dizer-te que só os homens instruídos e com estudos estão
preparados para dar alguma coisa ao mundo. Não é verdade.
Mas afirmo que os homens instruídos e com estudos, se, para começar, forem inteligentes
e criativos, o que infelizmente, raramente acontece, tendem a deixar atrás deles
memórias mais valiosas do que os homens simplesmente brilhantes e criativos.
Tendem a exprimir-se mais claramente, e normalmente têm a paixão de seguir
os seus próprios pensamentos até ao fim.
E, o que é mais importante, nove em cada dez vezes são
mais humildes do que os pensadores sem estudos. "




J.D.Salinger -  'À Espera no Centeio'

Vandalismo

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastes,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


Augusto dos Anjos

sábado, 9 de junho de 2012

PAOLO BIGELLI
"A felicidade de um amigo deleita-nos.
 Enriquece-nos.
 Não nos tira nada. 
Caso
a amizade sofra com isso,
 é porque não existe."

Jean Cocteau 
NICOLAY BOGOLOMOV

Sugerido ou estimulado pelos espelhos, as águas e os irmãos gémeos, o conceito do Duplo
é comum a muitas nações. É verosímil supor que sentenças como "Um amigo é um outro eu"
de Pitágoras ou o "Conhece-te a ti mesmo" platónico se inspiraram nele.
Na Alemanha chamaram-lhe o Doppelganger, na Escócia o Fetch, porque vem buscar (fetch)
os homens para os levar à morte. Encontrar-se consigo mesmo é, portanto, ignominioso;
a trágica balada Ticonderoga de Robert Louis Stevenson refere uma lenda sobre este tema.
Recordemos também o estranho quadro How they met themselves de Rossetti.
Para os judeus, em contrapartida, o aparecimento do Duplo não era presságio de
uma morte próxima. Era a certeza de ter alcançado o estado profético.
Uma tradição recolhida pelo Talmude narra o caso de um homem à procura de Deus,
que se encontrou consigo mesmo.
No relato William Wilson de Poe, o Duplo é a consciência do herói. Este mata-o e morre.
Na poesia de Yeats, o Duplo é o nosso anverso, o nosso contrário,
o que nos complementa, o que não somos nem seremos.
Plutarco escreve que os Gregos deram o nome de "outro eu"
ao representante de um rei.
JORGE LUIS BORGES - O Livro dos Seres Imaginários
FELIX MAS
TIMIDEZ


Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída

das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,

entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos nocturnos,

- que amargamente inventei.


E, enquanto não me descobres,

os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
ate' não se sabe quando...

- e um dia me acabarei.



Cecília Meireles

segunda-feira, 4 de junho de 2012


" ... enquanto sem dúvida, há combinações de coisas simples
que têm o poder de nos afetar, a análise desse poder ainda
está entre as cogitações além do nosso alcance."



Edgar Allan Poe
Kathleen Keifer
" (...) A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é
conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta
junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos.
É o segredo da beleza e a verdadeira substância de toda a arte.
O poeta que celebra, na dança dos seus versos, as magnificências e os
terrores da vida, o músico que lhes dá os tons duma pura presença,
trazem-nos a luz; aumentam a alegria e a claridade sobre a Terra,
mesmo se primeiro nos fazem passar por lágrimas e emoções dolorosas.
Talvez o poeta cujos versos nos encantam tenha sido um triste solitário,
e o músico um sonhador melancólico: isso não impede que as suas obras
participem da serenidade dos deuses e das estrelas. O que eles nos dão,
não são mais as suas trevas, a sua dor ou o seu medo, é uma gota de luz
pura, de eterna serenidade. Mesmo quando povos inteiros, línguas inteiras,
procuram explorar as profundezas cósmicas em mitos, cosmogonias, religiões,
o último e o supremo termo que poderão atingir é essa serenidade. (...)"

Hermann Hesse  -  "Música"

"Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida."


Mia Couto