segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.
OCTAVIO PAZ
Se o poeta é alguém, ele é alguém para quem as
coisas feitas importam muito pouco - alguém que é
obcecado pelo Fazer. Como todas as obsessões, a
obsessão de Fazer tem desvantagens; por exemplo,
meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo.
Mas felizmente eu preferiria fazer quase tudo o mais,
inclusive locomotivas e rosas. É com rosas e locomotivas
(para não mencionar acrobatas primavera eletricidade
Coney Island o 4 de Julho os olhos dos camundongos
e as Cataratas do Niágara) que meus "poemas" competem.
Eles também competem uns com os outros, com elefantes
e com El Greco.
e.e.cummings
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
sem contrapartida. Esta é uma visão idealisra da uma
cultura de equivalência. Mas numa forma mais radical,
no terreno de nossas trocas e ambivalentes paixões,
não é a doação que é impossível, mas sim a troca.
A doação além de possível é fatal, porque é a
encarnação da troca impossível. Se a doação
unilateral é impossível, por outro lado, o problema
da possibilidade unilateral de receber continua
intacto.
Mas existemseres capazes de receberem impunemente
sem retribuir e se tornam eles mesmos o objeto de
troca, a compensação viva do que foi doado.
Alguém capaz de bastar-se a si mesmo a ponto de nada
dar nem retribuir, mas que responde ao nosso desejo
obscuro de um ser ideal que não precisa de nós, mas do
qual precisamos.
JEAN BAUDRILLARD
Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires
foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral,
a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de
obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o
limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem
continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem
sabemos ousar porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa
convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos,
nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que
eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da
amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito
de indagar porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
imagina ser feliz e vê que é miserável; imagina ser perfeito
e descobre que está cheio de imperfeições; imagina ser o
objeto do amor e da estima dos homens, e descobre que
seus erros lhes causam apenas aversão e desprezo.
O embaraço em que se encontra então produz nele as
mais injustas e criminosas paixões que se possa imaginar,
pois concebe um ódio mortal contra a verdade que o
inculpa e o convence de seus erros.
PASCAL
de lado. E ouço correr, levando
grandiosos lenços contra a noite com estrelas
batendo nas patas
como magnólias pensando, abertas, correndo.
Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando
de lado, com as patas
no meio das letras, o rosto sufocado
correndo pelas portas grandiosas, as crinas
brancas batendo.
E eu ouço: é o som delas
com as patas negras, com as magnólias negras
contra a noite.
Correndo, lembrando, batendo.
HERBERTO HELDER
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da
cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra,
sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo.
Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície,
com seus fatos isolados, indisputáveis.
Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que
passa... Alguém que solidamente sentou-se numa
poltrona e olhou para o fogo e assim...
Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum
céu muito alto para atingir sua mente."
VIRGINIA WOOLF
Nunca digam - "Isto é natural!"
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que reina a confusão,
Em que corre sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbítrio tem a força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Nunca diga - " Isto é natural!",
Estranhem o que não for estranho.
Tornem por inexplicável o habitual.
Nós pedimos consistência.
Nunca digam - " Isto é natural"!
BERTOLT BRECHT
sábado, 11 de dezembro de 2010
experimentamos senão as misturas,
só encontramos reuniões. Quando um amarelo cai
sobre um azul, vira um verde.
Mudam as nomeações das alianças.
Ninguém pode pensar a mudança a não ser sobre misturas:
quando se tenta pensar sobre o simples, só se
chega a milagres, saltos e mutações."
MICHEL SERRES
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leões em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
domingo, 5 de dezembro de 2010
limitado no tempo e no espaço. Vê-se a si mesmo, aos seus pensamentos
e emoções como estando separado do resto, numa espécie de ilusão óptica
da consciência. Esta ilusão é um tipo de prisão que nos restringe aos nossos
desejos pessoais e que limita o afecto a umas quantas das pessoas que
nos rodeiam. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos dessa prisão,
alargando os nossos círculos de compaixão de modo a abraçarmos todas
as criaturas vivas e o conjunto da natureza, com toda a sua beleza."
ALBERT EINSTEIN
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.
É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.
É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.
Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
sábado, 4 de dezembro de 2010
“Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo,
que se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e
amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens,
depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado
nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua
presunção e reconheceram a sua insignificância.
(…) Quando perguntaram ao homem mais sábio que já existiu o que ele sabia,
ele respondeu que a única coisa que sabia era que nada sabia.
A sua resposta confirma o que se diz, ou seja, que a mais vasta parcela do
que sabemos é menor que a mais diminuta parcela do que ignoramos.
Em outras palavras, aquilo que pensamos saber é parte
— e parte ínfima — da nossa ignorância.”
Michel de Montaigne - ‘Ensaios’
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.
JORGE LUIS BORGES
(Tradução de Ferreira Gullar)
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Não é por ser curioso que deve olhar embaixo das coisas
ou dentro de valises e gavetas.
Nenhuma saudade te fará olhar sobre os ombros, furtivo;
nenhuma confiança tornará teu olhra altivo, fixo à frente.
Não fite tuas mãos, como quem cometeu um crime.
Nem os pés, como quem recebe um pito.
Nunca olhe um muro fixamente, como quem pensa.
Nem arregale os olhos, como quem se espanta
ou viu um fantasma. Não exclame "É bonito!" diante da paisagem,
nem ria do que fazem à sua frente.
Contenha teus olhos.
Não fite jamais um cadáver.
NUNO RAMOS
Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses faz tempo
e beijos bem vindos
de primeiras de troca
e de último vagão.
Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tato e sabor.
Sem um tremer de mais
me abraço a tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de ti.
Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição
Meus hóspedes concorrem
concorrem como sonhos
com seus rancores novos
sua falta de candura
eu lhe ponho uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de ti.
Porém o rosto de ti
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como vives
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagar a jornada.
As paredes se vão
fica a noite
as nostalgias se vão
não fica nada.
Já meu rosto de ti
fecha os olhos.
E é uma solidão
tão desolada.
MARIO BENEDETTI