quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


"A filosofia, é decerto uma grande coisa;
podemos fazer com ela o que queremos,
exceto alguma coisa banal."




ALAIN
Malevich
Há um fio que percorre continuamente todas as culturas
humana que conhecemos e que é feito de dois cordões.
Esse fio é o da ciência e da arte. Este emparelhamento
indissolúvel exprime, por certo, uma unidade essencial
da mente humana evoluída.
Não pode ser um acidente o fato de haver culturas
que se dediquem à ciência e não tenham arte e culturas
que se dediquem à arte e não tenham ciência.
E não há, certamente, nenhuma cultura desprovida de
ambas. Deve haver alguma coisa profundamente
enterrada no espírito humano - mais precisamente na
imaginação humana - que se exprime naturalmente em
qualquer cultura social tanto na ciência quanto na arte.

J. BRONOSWSKI
Irina Karkabi
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus


EUGENIO DE ANDRADE

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Anne Bachelier

 " Há uma crença em que a expansão dos poderes materiais e intelectuais da
humanidade é sempre um Progresso.
 
Isso tem seus limites, a princípio nem sempre visíveis.
E, quanto mais a confiança no Progresso, incluindo seu otimismo implícito,
pressiona esses limites, maiores são os perigos."
 
 
Werner Heisenberg
Alex Alemany
" Pode-se dar um valor humanista a quase tudo, ensinando-o historicamente.
A geologia, economia e a mecânica são humanidades, quando ensinadas em
referência às sucessivas realizações dos gênios a que essas ciências devem
a sua existência.
Não sendo dessa maneira, a literatura conserva-se como uma gramática;
a arte, um catálogo; a história, uma lista de datas;
e a ciência natural, uma página de fórmulas, pesos e medidas."
 
 
William James
 

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —

Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
 
 

Augusto dos Anjos

terça-feira, 11 de dezembro de 2012


" Então acham que o passado, porque já foi, está acabado e imutável?
Ah não, sua vestimenta é feita de um tafetá furta-cor,
e cada vez que nos voltamos para ele podemos vê-lo com outras cores."
 
 
MILAN KUNDERA - A Vida está em Outro Lugar
Jamie Heiden

"A palavra de que eu gosto mais é não.
 Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. 
O não é a única coisa efetivamente transformadora, que nega 
o status quo. Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar
injustamente de um estatuto de autoridade.
É o momento em que é necessário dizer não. 
A fatalidade do não - ou a nossa própria fatalidade
 - é que não há nenhum não que não se converta em sim.
 Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim. "


José Saramago
 
Pablo Picasso
TEMPO
 
Não conseguimos enxergar onde estamos, mas sobre
esse assunto lemos livros– helicópteros que não levantam voo.
 
Podemos modificar o tempo: por palavras, em nada, no presente,
nas nossas cabeças. Tempo, leitor, é teoria que nos suporta.
 
Desapareceram palavras onde nós estávamos, brancas figuras
humanas na fita preta da máquina de escrever. Marcados, continuámos.
 
Rastejando pelos montes do tempo que nos impedem a vista,
enferrujando nos sifões do tempo: sumiram-se palavras!
 
A fita, a paisagem, a máquina: desfiguramo-las.
Resta-nos o prazer da serrazina, o descanso do marcado a ferro
 
e a monumental fuga em metáforas, em lúcida incompreensão.
 
 
MARK BOOG

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Kokochka
A literatura é um lugar em qualquer sociedade onde, dentro da
privacidade de nossas próprias cabeças, conseguimos ouvir
vozes falando sobre tudo, de todo modo possível.

SALMAN RUSHDIE
Rafal Olbinsky
Recomeça… se puderes,
sem angústia e sem pressa
e os passos que deres,
nesse caminho duro do futuro,
dá-os em liberdade,
enquanto não alcances não descanses,
de nenhum fruto queiras só metade.




MIGUEL TORGA
Gil Bruvel
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada. 

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada. 

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma, 

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.


Luís de Camões

domingo, 2 de dezembro de 2012


 " O sentimento de vocação, ainda que talvez raro, não é necessariamente bom.
Os fanáticos o têm; as mentes obsessivas podem tê-lo.
Ao mesmo tempo, o sentimento de vocação deve implicar pelo menos um pouco
de auto-investigação.
Como em todo o resto, a pessoa pode conhecer melhor
seus objetivos do que suas motivações."
 
 
 
John Lukacs
Vasily Perov
 " Parece-me inegável que, até este século, a literatura usava a linguagem
como todos a utilizamos, a pintura representava o que vê qualquer um que
tenha a visão normal, e a música era uma questão de sons agradáveis,
não de ritmos ruidosos.
 
A inovação do "modernismo" nas artes constitui um fazer o inverso.
Não sei por que, não sou historiador. É preciso distinguir entre coisas
que pareciam estranhas quando novas, mas que são hoje muito familiares,
e coisas que pareceram loucas quando novas e parecem loucas hoje.
 
Loucas e feias, pois o fim dos ideais de representação foi marcado por uma
tendência crescente, nas letras, na arquitetura, na música,
na pintura e na poesia, para a feiura."
 
 
 
 
Philip Larkin
Katie Allen

Poema didático

Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo
Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos,
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto do meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me,
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhando a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar ?

Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse.
E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia -
E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica -
E não olhei mais a estrela - mas o rosto que refletiu o seu fulgor.
Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto ?
O mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magnificas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
nele, como causa primeira, existe o corpo do homem
- cabeça, tronco, membros, as pirações e bem estar...

E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga advinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
O mundo nasceu das necesidades. O caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconsequente,
Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo -
Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram -
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda sofria sobre as armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade,
sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.

 
Paulo Mendes Campos