segunda-feira, 26 de agosto de 2013


"Uma «ideia» pode levar ao obscurecimento das sensações e distrair
da realidade corrente (...) mas nenhuma «ideia» tem a força de nos
arrebatar a um ponto tal que não paremos de repente perante
um fato impressionante e não lhe sacrifiquemos tudo o que,
durante anos de trabalho, tenhamos feito em prol da «ideia». "
 


Fiodor Dostoievski - 'O Adolescente
 

"A esperança é filha do desejo, mas não é o desejo. Constitui uma aptidão mental,
que nos fez crer na realização de um desejo. Podemos desejar uma coisa sem que
a esperemos. Toda gente deseja a fortuna, muito poucos a esperam.
 
Os sábios desejam descobrir a causa primitiva dos fenômenos; eles não têm nenhuma
esperança de consegui-lo. O desejo aproxima-se algumas vezes da esperança,
a ponto de confundir-se com ela. Na roleta, eu desejo e espero ganhar.
 
A esperança é uma forma de prazer em expectativa que, na sua atual fase de espera,
constitui uma satisfação freqüentemente maior do que o contentamento produzido
pela sua realização. A razão é evidente. O prazer realizado limita-se em quantidade
e em duração, ao passo que nada limita a grandeza do sonho criado pela esperança.
A força e o encanto da esperança consistem em conter todas as possibilidades de prazer.
Ela constitui uma espécie de vara mágica que transforma tudo.
Os reformadores nunca fizeram mais do que substituir uma esperança por outra."


Gustave Le Bon -  'As Opiniões e as Crenças'
 
 

É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!
É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre, livre, livre.
 
 

MANUEL ALEGRE

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Andrew Pearce
" Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
 
No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim."
 
 
Guimarães Rosa
 
Alphonse Mucha

 " A experiência é relacionada à memória individual e coletiva,
ao inconsciente e à tradição. A vivência relaciona-se à existência privada,
à solidão e à percepção consciente.
 
Nas sociedades modernas, o declínio da experiência corresponderia
a uma intensificação da vivência. A experiência se tornaria definitivamente
problemática e a sua possibilidade passaria a depender
de uma construção vinculada à escrita."
 
 
Walter Benjamin
John Collier

Amar


Que pode uma criatura senão, 
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar, 

amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor,
um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa
amar a água implícita,
e o beijo tácito,
e a sede infinita.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 2 de agosto de 2013


" A mentira é a mais-valia arrancada da credulidade. 
Já que a mentira só existe quando há um crédulo.
Pois ao cético ninguém mente já que ele não crê na verdade."


Millôr

" Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores,
cores, neve e flores, e, no entanto, não possuímos nada mais
do que metáforas das coisas, que de modo algum correspondem
às entidades de origem...
E até mesmo o conceito, rigoroso e frio da matemática,
é somente resíduo de uma metáfora."


Nietzsche


FAMILIAR
Tradução: Silviano Santiago

A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia
A mulher faz tricô
O filho luta na guerra
Ele negocia
Tudo muito natural acha o pai
E o filho e o filho
o quê que o filho acha?
Nada absolutamente nada acha o filho
O filho sua mãe faz tricô seu pai negocia ele
[ luta na guerra
Quando tiver terminado a guerra
Negociará com o pai
A guerra continua a mãe continua ela tricota
O pai continua ele negocia
O filho foi morto ele não continua mais
O pai e a mãe vão ao cemitério
Tudo muito natural acham o pai e a mãe
A vida continua a vida com o tricô a guerra
[ os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.

JACQUES PRÉVERT