«Não se trata aqui do homem conhecido das escolas, da economia política ou da estatística,
nem do homem que aos milhões anda pela rua e não tem mais importância do que a areia
ou a espuma dos mares: pouco adiantam alguns milhões a mais ou a menos; são material
e nada mais. Não, nós falamos aqui do homem no sentido elevado do termo, do largo caminho
da encarnação humana, do homem verdadeiramente real, dos imortais. O génio não é tão
raro como em geral nos parece, nem tão frequente como pretendem as histórias literárias,
a história universal e até mesmo os jornais.(…) É tão estranho e entristecedor que homens
de tais possibilidades surjam como lobos da estepe e com “duas almas, ai!” e que mostrem
tamanha afeição cobarde ao burguês. Um homem capaz de compreender Buda, um homem
que tem noção dos céus e dos abismos da natureza humana, não deveria viver num meio
em que domina o senso comum, a democracia e a educação burguesa. Só por cobardia continua
a viver nele, e quando as suas dimensões o oprimem, quando a estreita cela do burguês se
torna demasiado apertada, ele atribui tudo isto ao ‘ ‘lobo” e não quer aperceber-se de que,
às vezes, o lobo é a sua parte melhor. Tudo o que há de feroz dentro de si ele atribui-o ao lobo
e tem-no por mau, perigoso, o terror dos burgueses; mas ele que, no entanto, crê-se um artista
e supõe ter sensibilidade, não é capaz de ver que fora do lobo, atrás do lobo, vivem no seu
interior muitas outras coisas: que nem tudo o que morde é lobo; que dentro de si habitam
também a raposa, o dragão, o tigre, o macaco e a ave-do-paraíso, e que todo este mundo é
um éden cheio de milhares de seres, formosos e terríveis, grandes e pequenos, fortes e
delicados, mundo asfixiado e cercado pelo mito do lobo — tanto como o verdadeiro homem
que nele há é asfixiado e preso apenas pela sua aparência de homem, pelo burguês.»
Hermann Hesse - O Lobo da Estepe