quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
do mar às espirais dos vales,
e te assaltou, desgrenhou teu cabelo,
novelo breve contra o pálido céu;
a rajada que colou teu vestido
e rápida te modulou à sua imagem,
como voltou, tu longe, a estas pedras
que o monte estende sobre o abismo;
e como passada a embriagada fúria
retoma agora ao jardim o hálito submisso
que te ninou, estirada na rede,
entre as árvores, nos teus vôos sem asas.
Ai de mim! O tempo nunca arranja duas vezes
de igual maneira suas contas! E é esta a
nossa sorte: de outra maneira, como na natureza,
nossa história se abrasaria num relâmpago.
Surto sem igual, - e que agora traz vida
a um povoado que exposto
ao olhar na encosta de um morro
se paramenta de galas e bandeiras.
O mundo existe... Um espanto pára
o coração que sucumbe aos espíritos errantes,
mensageiros da noite: e não pode acreditar
que homens famintos possam ter sua festa.
EUGENIO MONTALE
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Caminhamos ao encontro do amor e do desejo.
Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que
se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e
dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece
fútil. Quando a mim, não procuro estar sozinho
nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles
que amava, e discernia em seus traços o claro
sorriso que neles tomava a face do amor.
Deixo a outros a ordem e a medida.
Domina-me por completo a grande libertinagem
da natureza e do mar.
Albert Camus
Na sacada, um instante
ficamos os dois sós.
Desde a doce manhã
daquele dia, éramos noivos.
A paisagem sonolenta
dormia seus incertos tons,
sob o céu cinza e rosa
do crepúsculo de outono.
Disse-lhe que ia beijá-la;
baixou, serena, os olhos
e me ofereceu suas bochechas,
como quem perde um tesouro.
Caíam as folhas mortas,
no jardim silencioso,
e no ar errava ainda
um perfume de heliotrópios.
Não se atrevia a olhar-me;
disse-lhe que éramos noivos,
...e as lágrimas rodaram
de seus olhos melancólicos.
Juan Ramón Jimenez - Primeras Poesías
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
O que a experiência nos dá não são princípios
eternos, definitivos, mas uma coleção de contextos
mentais sutilmente associados. Esses conteúdos
da experiência, trabalhados pela nossa consciência,
vão se alterando à medida que nós próprios
mudamos. Nós mudamos nossas percepções e
elas nos mudam. Imaginação e memória são
responsáveis pelo desenho permanente de nossas
ideias. A verdadeira função das experiências que
se sucedem deveria portanto, nos manter em
estado de atenção, numa consciente e
interessada observação do que se vive.
Lu
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...
Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
Mário Quintana
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
O vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.
Quer levar-me: escuta
como percorre o mundo
para levar-me para longe.
Esconde-me em teus braços
por esta noite apenas,
enquanto a chuva abre
contra o mar e contra a terra
a sua boca inumerável.
Escuta como o vento
me chama galopando
para levar-me para longe.
Com tua fronte na minha
e na minha a tua boca,
atados os nossos corpos
ao amor que nos abrasa,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.
Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e procure
galopando na sombra,
enquanto eu, submerso
sob os teus grandes olhos
por esta noite apenas
descansarei, meu amor.
PABLO NERUDA
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele.
RICARDO REIS
ao desejo e não à razão, não seremos capazes de viver
em democracia,
porque
lutaremos para impor a verdade. A democracia é uma
conspiração social
para uma convivência na qual a pobreza, o abuso e a
exploração são erros
a serem corrigidos porque se tem o desejo de fazê-lo.
Além disso, o viver na democracia exige aceitar que o
projeto de uma ordem social não é pertinente, porque
ela é, de fato, uma conspiração fundada num desejo de
convivência. Ao pretender elaborar um projeto de uma
ordem social abrimos espaço para a tirania, porque nos
erigimos como sabedores do dever social e exigimos
que os outros sejam de uma certa maneira que
consideramos apropriada...a conspiração democrática
é um convite criativo, não uma restrição autoritária.
HUMBERTO MATURANA
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
É tornar vulnerável nossa identidade, nosso autodomínio.
Na primeira fase da epilepsia, ocorre um sonho característico
(Dostoievski nos fala sobre isso).
De algum modo a pessoa se desprende de seu próprio corpo;
ao olhar para trás, vê-se a si mesma e sente um súbito medo
alucinante; uma outra presença está entrando em seu próprio
ser, e não há caminho de volta.
Sentindo esse medo, a mente busca um abrupto despertar.
Assim deveria ser quando temos nas mãos uma importante obra
literária ou filosófica, ficcional ou doutrinária.
Pode vir a nos possuir tão completamente que, por um momento,
permanecemos com medo de nós mesmos e em estado de
imperfeito reconhecimento.
Quem leu A Metamorfose de Kafka e consegue se olhar no
espelho sem se abalar, talvez seja capaz, do ponto de vista
técnico, de ler a palavra impressa, mas é analfabeto no
único sentido que importa.
George Steiner - Linguagem e Silêncio
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
própria aparência que repousa sobre ela.
Ela tem o modo do 'aparecer'.
Mas aparecer significa aparecer em algo e,
assim, alcançar o parecimento, por si mesmo,
naquilo que recebe sua aparência.
A beleza tem o modo de ser da luz.
Hans-Georg Gadamer - Verdade e Método.
aceita-o e contenta-se com ele. Libertado de si, curado
do medo e da esperança, despreocupado com os signos
e o sentido, só habita o tempo na paz aqui, agora e
sempre, da presença. Não aguarda nada, mas é atento.
Não busca nada, mas é disponível. Não espera nada,
mas ama. Todos os sábios disseram, em todas as línguas:
"Infinite love, infinite patience". Sabedoria, não de
recolhimento, mas de acolhida. O sábio tem o tempo
(já que não aguarda nada) e todo o tempo
(já que não há outro). Paciência, não da espera, mas da
vida, não para o futuro, mas para o presente.
Os ocupados se precipitam para o que lhes falta, ou
aguardam (pacientemente, dizem eles!) que lhes caia
dos céus. O sábio faz, tranqüilamente, o que tem a fazer.
Não aguarda nada, e é por isso que não tem impaciência.
Nada lhe falta, e é por isso que não se precipita.
Lentidão do tempo, lentidão da presença...
Todos os dias são hoje, é "o oitavo dia da semana, que
não começa e não se esgota em nenhum tempo",
e essa presença é exatamente aquilo a que o sábio está
presente. Ele ainda vive no tempo? Claro, mas na verdade
do tempo. Presente ao presente da presença, ele é aqui
e agora, contemporâneo do eterno.
André Comté-Sponville
Aquele pássaro que voa por primeira vez
Se afasta do ninho olhando para trás
Com o dedo nos lábios
eu os chamei
Eu inventei jogos de água
Na copa das árvores
Fiz de ti a mais bela das mulheres
Tão bela que enrubesces nas tardes
A lua se afasta de nós
E lança uma coroa sobre o pólo
Fiz correr rios
que nunca existiram
Com um grito elevei uma montanha
E arredor bailamos uma nova dança
Cortei todas as rosas
Das nuvens do leste
E ensinei um pássaro de neve a cantar
Marchemos pelos meses desatados
Sou o velho marinheiro
que costura os horizontes cortados
VICENTE HUIDOBRO - poeta chileno
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
memória reteve,
é menos decisivo do que se pensa para a
felicidade da nossa vida.
Chega um dia em que surge nela aquilo que,
sabem os outros (ou julgam saber),
de nós: damo-nos conta de que a sua opinião
é mais poderosa.
Arranjamo-nos melhor com a má consciência
do que com a má reputação.
FRIEDRICH NIETZSCHE
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
Álvaro de Campos