quarta-feira, 26 de maio de 2010
Que é viajar, e para que serve viajar?
Qualquer poente é o poente... porque
se a libertação não está em mim, não está,
para mim, em parte alguma. Nunca desembarcamos
de nós. " Por mais alto que subamos e mais baixo
que desçamos, nunca saímos das nossas sensações",
segundo Condillac. As verdadeiras paisagens são as
que nós mesmos criamos, porque assim, sendo
deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente
são, que é como foram criadas. Quem cruzou todos
os mares, cruzou somente a monotonia de si mesmo.
Já cruzei mais mares do que todos. Passei já por
cidades mais que as existentes, e os grandes rios de
nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus
olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a
cópia débil do que já vira sem viajar.
FERNANDO PESSOA
não sobrevive a palavra!
Se depois das asas dos pássaros,
não sobrevive o pássaro parado!
Mais valeria, na verdade,
que coma tudo e acabemos!
Ter nascido para viver na nossa morte!
Levantar-se do céu rumo à terra
por seus próprios desastres
e espiar o momento de apagar com a sua sombra as suas trevas!
Mas valeria, francamente,
que comam tudo e tanto faz!…
E se depois de tanta história, sucumbirmos,
não já na eternidade,
mas dessas coisas simples, como estar
em casa ou pôr-se a matutar!
E se em seguida descobrirmos,
subitamente, que vivemos,
a avaliar pela altura dos astros,
pelo pente e as nódoas do lenço!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo, sem dúvida!
Dir-se-á que temos
num dos olhos muita pena
e também no outro muita pena
e nos dois, quando olham, muita pena…
Então… Claro!… Então… nem uma só palavra!
César Vallejo
sexta-feira, 21 de maio de 2010
(...) dessas seguranças acerca dos mais extremos horizontes, nós nem sequer "precisamos" para viver uma humanidade plena e competente: assim como a formiga não precisa delas para ser uma boa formiga (...) nos domínios mais extremos em cuja direção se obstina ainda o olho, sem penetrar neles, introduziram sorrateiramente conceitos tais como culpa e castigo (...) Desde antiguidades fantasiou-se com temeridade, ali onde se podia estabelecer nada, e persuadiu-se a posteridade a tomar essas fantasias a sério e como verdade, recorrendo por último ao abominável trunfo: crer tem mais valor do que saber (...)
Tão pouco quanto essas questões dos religiosos importam-nos as questões dos filósofos dogmáticos, quer sejam idealistas ou materialistas ou realistas. Todas elas visam a constranger-nos a uma decisão em domínios onde crença nem saber são necessários; é útil que ao redor de tudo que é sondável e acessível à razão se estenda um enevoado e traiçoeiro cinturão pantanoso, uma faixa de impenetrável, de eternamente fluido e de indeterminável (...) Temos de tornar-nos outra vez "bins vizinhos das coisas mais próximas" e não, como até agora, olhar tão desdenhosamente por sobre elas em direção a nuvens e demônios noturnos.
NIETZSCHE
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas
Mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como
Um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores
Quase sem perfume
A pureza da chama em que
Se consomem os diamantes
Mais límpidos
A paixão dos suicidas que
Se matam sem explicação.
MANUEL BANDEIRA
quarta-feira, 12 de maio de 2010
" ...o mais infalível veneno é o tempo.
Essa taça, que a natureza nos põe nos lábios, possui
uma propriedade maravilhosa que supera qualquer outra bebida.
Ela abre os sentidos, adiciona poder e povoa-nos de sonhos
exaltados, a que chamamos esperança, amor, ambição, ciência.
Em particular, ela desperta o desejo por maiores doses de si.
Mas aqueles que tomam as maiores doses ficam embriagados,
perdem estatura, força, beleza e sentidos, e terminam em
fantasia e delírio. Nós adiamos o nosso trabalho literário até
que tenhamos maturidade e técnica para escrever, mas um
dia descobrimos que o nosso talento literário não passava de
uma efervescência juvenil que perdemos. "
Ralph Waldo Emerson
Porias o universo em teu bordel,
mulher impura! O tédio que te faz cruel.
Para treinares os dentes neste jogo singular,
Terás a cada dia um coração a devorar,
Teus olhos a girar assim como farândolas,
De festas de fulgor a imitar as girândolas,
Exibem com insolência uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza!
Máquina cega e surda e de um cruel fecundo!
Instrumento a beber todo o sangue do mundo,
Já perdeste o pudor e ao espelho não viste
Tua beleza cada vez mais murcha e triste?
A grandeza de um mal que crês saber tanto
Nunca pôde fazer-te retroceder de espanto,
Na hora em que a natureza em desígnios velados,
De ti se serve, mulher, ó deusa dos pecados,
- A ti, vil animal – para um gênio formar?
Ó grandeza da lama! Ó ignomínia exemplar!
Charles Baudelaire
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e
compreendo que todo o meu horror de morrer está
contido em meu ciúme de vida. Sinto ciúme daqueles
que virão e para os quais as flores e o desejo de mulher
terão todo o seu sentido de carne e de sangue.
Sou invejoso porque amo demais a vida para não
ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e
contemplar minha morte com toda a exuberância de
meu ciúme e de meu horror.
ALBERT CAMUS
quinta-feira, 6 de maio de 2010
Michel Serres
Quando desperto mansamente agora
é todo um sonho azul minha janela
e nela ficam presos esses olhos
amando-te no céu que faz lá fora.
Tu me sorris em tudo, misteriosa…
e a rua que – tal como outrora – desço,
a velha rua, eu mal a reconheço
em sua graça de menina-moça…
Riso na boca e vento no cabelo,
delas vem vindo em bando…E ao vê-lo
por um acaso olha-me a mais bela.
Sabes eu amo-te a perder de vista…
E bebo então, com uma saudade louca,
teu grande olhar azul nos olhos dela!
Mario Quintana
segunda-feira, 3 de maio de 2010
" O maior problema do viver-junto é saber regular a distância, para além
a para aquém da qual se produz uma crise. O que é desejado é uma
distância que não quebre o afeto. Alacançaríamos aquele valor que
defino com o nome de "delicadeza" - distância e cuidado, ausência
de peso na relação, e, entretanto, calor intenso dessa relação."
ROLAND BARTHES
Gosto de ampulhetas, de mapas, de etimologias, do sabor do
café e da prosa de Stevenson...
Vivo, continuo a viver, para que Borges possa realizar
a sua literatura; e essa literatura me
justifica. Anos atrás, tentei me livrar dele,
e fui de mitologias dos subúrbios da cidade a jogos
com o tempo e a infinidade, mas agora esses jogos
pertencem a Borges, e terei de inventar outra coisa.
Assim, minha vida é uma fuga, e perco tudo,
e tudo pertence ao passado ou a ele.
Não sei qual de nós dois está escrevendo esta página.
a carne cobre os ossos
e colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homem bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca
muito mais do que mera
carne.
de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.
ninguém nunca encontra
o par ideal.
as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam
nada mais
se completa.