segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira»
fala disso, seria a revolução da bondade.
Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons,
os problemas do mundo estariam resolvidos.
Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate.
Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir,
cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se
por princípios éticos.
Pelo menos a sua passagem pelo este mundo não terá sido inútil e,
mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa.
Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra,
damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos
que fizeram da sua vida uma sistemática ação perniciosa
contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.
José Saramago
Vendo que se faziam reverências
Quando passava
Julgou-se reverenciado
Porque iriam reverenciá-loJá que não merecia distinção?
Mas isso o Asno não se perguntava.
Seguia em frente todo presunção
Até que um bom
cidadão que ali passavaFê-lo voltar ao bom senso:
Lembre, seu Asno, que a vaidade cega
Não é para o senhor que queimam incenso
Mas para essas relíquias que carrega
"Também ao mau juiz não se respeita
E, sim, somente à toga que o enfeita."
LA FONTAINE
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram.
Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem
do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares.
As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino
dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro
dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que
significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos.
O vento dentro da escuridão como o único objeto que pode ser
tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias,
a esperança e o desencanto.
José Luís Peixoto - 'Antídoto'
Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem
esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu
sonho louco
Voava das estrelas à mais
rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se
conformara.
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão
se o não tiver;
Se quero, é só enquanto
apenas quero;
Só de longe, e secreto, é
que inda posso amar...
E venha a morte quando Deus
quiser.
Mas, com isto, que têm as
estrelas?
Continuam brilhando, altas
e belas.
José Régio
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
desconfiadas agora
atentas às flores
e todas as outras
sem sorrir
lembrando outras
sorrindo nos jardins
atentas às flores
desconfiadas agora
que lembram outras
desconfiadas agora
apresentando flores
que lembram outras caras
lembrando outras
sem desconfiar pelos jardins
que apresentam os seus jardins
lembrando outras
que desconfiam das flores
HAROLD PINTER
domingo, 23 de outubro de 2011
mas que nos faltam ideias próprias.
Aos 20 anos dizem que somos muito espertos,
mas que não venhamos com ideias.
Aos 30 pensamos que ninguém mais tem ideias.
Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas.
Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias.
Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos
do que estávamos a pensar.
Aos 70 só pensar já nos faz dormir.
Aos 80 só pensamos quando dormimos."
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça
Pode ser feito o trabalho
De que resulta a abundância.
Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e nos felizes.
O povo necessita do pão diário
Da justiça, bastante e saudável.
Sendo o pão da justiça tão importante
Quem, amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o outro pão
Deve o pão da justiça
Ser preparado pelo povo.
Bastante, saudável, diário.
Bertolt Brecht
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
“Mas, então, como podemos fazer o caminho que vai desde a incapacidade para entender a lógica dos fatos até à capacidade para nos distanciarmos e de uma forma clara perceber que atitude assumir? Repare que utilizei a palavra distanciamento. E essa é uma boa forma para entendermos este processo. Quando estamos muito próximo de um muro, é difícil ver o que está atrás dele. Mas se nos afastarmos, é como se ele se tornasse mais baixo e já conseguimos ver mais longe. Ver mais é aqui a palavra-chave. Ver mais do que aquilo que estamos a sentir. Conseguir colocar-se «numa posição» que permita olhar a nossa vida como se se tratasse da vida de outra pessoa. Criar este processo é o que os psicólogos chamam «construir consciência». A consciência é como se tivéssemos criado uma outra pessoa dentro do nosso próprio corpo e, quando temos de tomar decisões, então essa outra pessoa, que somos ainda nós, age como um conselheiro.”
Joaquim Quintino Aires, in O Amor é uma Carta Fechada
Princípios
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
Nuno Júdice
terça-feira, 18 de outubro de 2011
um meio, graças a uma ilusão espraiada sobres as coisas,
para manter suas criaturas na vida e forçá-las a continuar a viver.
Uns são acorrentados pelo prazer do conhecimento e pela ilusão de
poder curar, com ele, a eterna ferida da existência.
Outros são enredados pelo véu da beleza da arte que paira diante
de seus olhos, aquele outro, pela consolação metafísica de que
sob um torvelinho dos fenômenos da vida eterna continua a
fluir indestrutível.
Para não falar das ilusões mais comuns e quase que ainda mais
fortes que a vontade tem à sua disposição a cada instante.
NIETZSCHE
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
compreendi melhor, que, quando estamos enamorados de
uma mulher, projetamos simplesmente nela um estado de
nossa alma; que por conseguinte o importante não é o
valor da mulher, mas a profundidade do estado; e que as
emoções que uma moça medíocre nos dá podem permitir-nos
fazer elevarem-se à consciência algumas partes mais íntimas
de nós mesmos, mais pessoais, mais longínquas, mais
essenciais do que o prazer de conversar com um homem
superior ou mesmo o de contemplar com admiração suas
obras seria capaz de produzir.
Marcel Proust
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?
Manuel Bandeira
terça-feira, 11 de outubro de 2011
Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação
para o que não for vida.
Tal avidez tem algo de plebeu, não acha?
A aristocracia não se concebe sem um pouco
de distância em relação a si mesma e à própria vida.
Morre-se se for preciso, antes quebrar que dobrar.
Mas, eu, eu me dobro, porque continuo a me amar.
ALBERT CAMUS
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
" Insaciável, vossa alma aspira a tesouros,
porque vossa virtude é insaciavelmente vontade de dar.
Todas as coisas são obrigadas a vir a vós e estar em vós,
para que voltem a fluir de vosso manancial como
dons de vosso amor.
Em verdade, esse amor dadivoso só pode tornar-se
o ladrão de todos os valores;
mas este egoísmo, eu vos digo, é sadio e sagrado."
NIETZSCHE
Alguém está morto
até as árvores o sabem,
essas pobres dançarinas que se achegam lúbricas,
todas estola verde-ervilha e vértebras de poste.
Penso...
Penso que poderia tê-la detido;
se houvesse sido firme enfermeira
ou notado o colo do motorista
no que ele burlava o sinal do cruzamento;
e depois à noite,
se mantivesse meu guardanapo à boca;
penso que poderia...
se fosse diferente, ou sábia, ou calma,
ter encantado a mesa,
o tenso repasto ou a mão do crupiê.
Mas está feito.
Tudo já foi gasto.
Não há qualquer dúvida em meio às árvores
esticando seus finos pés sobre a relva seca.
Um ganso canadense alça vôo,
estirado como uma blusa de camurça cinza,
enganchando seu bico no vento de março.
No limiar um gato boceja calmo
em sua pelica azul.
Os pratos principais se serviram e o sol
desacostumado a tudo
segue sempre se pondo.
Anne Sexton
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
se se move dentro das fronteiras das suas capacidades
e das suas disposições pessoais.
Pelo contrário, acontece que aquilo que noutros
são qualidades incomparáveis, podem ser obscurecidas,
apagadas ou mesmo aniquiladas, se se desfaz aquele
equilíbrio imprescindível.
E este mal há-de tornar-se ainda mais evidente nos
tempos modernos; pois quem será capaz de satisfazer
as exigências de um presente que não pára de crescer
e que aliás cresce cada vez mais depressa?
GOETHE