quinta-feira, 29 de março de 2012
Num mundo utilitário não existe coisa alguma permanente.
Tudo se torna descartável. O critério da utilidade retira
das coisas e das pessoas todo valor que elas possam ter,
em si mesmas, e só leva em consideração se elas podem
ser usadas ou não. No círculo sagrado tudo se transforma...
o homem se descobre totalmente dependente de algo que
lhe é superior. Sente-se ligado às coisas sagradas por
laços de profunda reverência e respeito.
O sagrado lhe é superior, objeto de adoração.
O sagrado é o criado, a origem da vida, a fonte da força.
O homem é a criatura."
RUBEM ALVES
mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
Nuno Júdice
quarta-feira, 28 de março de 2012
o direito à água, direito ao ar, direito ao desejo, direito à paternidade.
O que quer dizer, aliás, do "direito à vida"? Se é que ele expressa o que quer dizer, significa que a vida perdeu realmente sua evidência.
O direito acaba agindo como invocação desesperada das qualidades perdidas. É assim que se verá, provavelmente logo, surgir face à extensão da estupidez, um " direito à inteligência".
JEAN BAUDRILLARD
Não sei quando.
Sei que a sombra se alonga
e eu me alongo,
bólide na erva.
Ainda serei eterno.
Tenho ânsias cativas
no caderno. Cortejo
de símbolos, navios
e nunca mais me encerro
no meu fio.
Ainda serei eterno.
O mês finda, o ano,
o recomeço.
E o fraterno em mim
quer campo, monte, algibe.
Mas sou pequeno
para tanto aceno.
Metáforas me prendem
o eterno
que se pretende isento.
Numa dobra me escondo;
Noutra, deito.
Os nomes me percorrem no poente.
Sou sobrevivente
de alguma alta esfera
que saía de si mesma
e é primavera.
O eterno ainda será viável
como o sol, o dia,
o vento,
misturado ao que me entende
e transborda.
Misturado ao permanente
que me sobra.
Carlos Nejar
terça-feira, 27 de março de 2012
desgraça justificada com relação a uma ordem
transcendental do Mal. Tal é a regra de um otimismo radical.
É preciso fazer do mal a regra do jogo.
É então que a exceção passa a ser a da felicidade.
É a alegria que se torna fatal.
Isto confere ao Bem e à felicidade um prestígio novo:
o de uma miraculosa exceção.
JEAN BAUDRILLARD
O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca
e fresca como o pão.
E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto, ainda leve, quente
e fresco como o pão
João Cabral de Melo
quinta-feira, 22 de março de 2012
da vontade, cada decisão cria duas vertentes opostas
onde a vida escoará em sentido inverso
- cada fração de destino afastando-se irremediavelmente
da outra. Tais a chuva e as nuvens, cada destino
pessoal será redistribuído no ciclo impessoal.
Quanto ao tempo, cada instante é a linha divisória
onde passado e futuro se separam para nunca mais
se reencontrarem.
A existência por sinal nada mais é que a divergência
cada vez maior de passado e futuro,
até que a morte os reúna num presente absoluto."
JEAN BAUDRILLARD
Com o poder de ver do coração
Quando não sou, quanto não posso ser,
Quanto, se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem,
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi as urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico,
Escrevo-o para lembrar bem.
Fernando Pessoa
terça-feira, 20 de março de 2012
a substância, fluida;
a sensação, apagada;
a composição de todo o corpo, putrescível;
a alma, inquieta;
a sorte, imprevisível;
a fama, incerta.
Em suma, tudo o que é do corpo
é um rio;
o que é da alma,
sonho e névoa.
O que pode, pois, servir-nos de guia?
Só e única, a Filosofia.
Consiste ela em guardar o interior
livre de insolências e danos,
mais forte que os prazeres e mágoas,
nada fazendo com leviandade,
engano e dissimulação.
Acatando ainda os eventos
que lhe tocam, como vindos,
da mesma origem de si mesmo.
MARCO AURÉLIO - filósofo estóico
Onde às vezes param, e são morosas por dentro.
Há cidades absolutas, trabalhadas interiormente
pelo pensamento das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águascelestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos estremecem.
Mulheres que imaginamnum supremo silêncio,
elevando-se sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas nem dedos.
Onde consumouma amizade bárbara.
Um amor levitante. Zona que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos pensadores.
Para que algumas mulheres sejam cândidas.
Para que alguém bata em mim no alto da noite
e me diga o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiramo fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada sobre escada.
MuIheres que eu amo com um des-espero fulminante,
a quem beijo os péssupostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror, com alegria.
Em que toco levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces e formidáveis no espaço,
dentrode ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixoe criam uma insondável ilusão.
Dentro de minha idade, desde a treva, de crime em crime -
espero a felicidade de loucas delicadas mulheres.
Uma cidade voltada para dentrodo génio,
aberta como uma boca em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sanguede um amargo delírio
.Olho de cima a beleza genialde sua cabeça ardente:
- E as altas cidades desenvolvem-se no meu pensamento quente.
Herberto Helder
quarta-feira, 14 de março de 2012
A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que
o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que
o homem de ação. Em melhores e mais diretas palavras: o sonhador é que é
o homem de ação."
FERNANDO PESSOA
segunda-feira, 12 de março de 2012
condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego
reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio
seio daquilo que foge e desaparece.
A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine
e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia
sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar.
(…) Que é um homem revoltado? Um homem que diz não.
Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem
que diz sim, desde o seu primeiro movimento.
Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida,
julga subitamente inaceitável um novo comando.
Qual é o significado deste ‘não’?
ALBERT CAMUS
DESPEDIDAS
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
Affonso Romano de Sant'Anna
sábado, 10 de março de 2012
Serão semanas de infindável paciência, de alegria intacta, e algumas
horas de ressentimento e azar. Nada vai mudar.
Até o mar tem dias de ressaca.
Não podemos aumentar a exigência a cada questionamento, formular
paranoias e teorias de conspiração, esperar desmascarar nossa companhia.
No fundo, ninguém se ama o suficiente para ser amado.
É aceitar o desvio e retornar para perto do ponto.
Aproximar-se com a igual gana do início, esforçar-se novamente para
conquistar a empatia da solidão.
E nunca ter controle sobre o resultado.
FABRÍCIO CARPINEJAR
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
CORA CORALINA
quinta-feira, 8 de março de 2012
Embora os meus olhos sejam
os mais pequenos do mundo
o que importa é que eles vejam
o que os homens são no fundo
Que importa perder a vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo
calai-vos que pode o povo
querer um mundo novo a sério
Eu não tenho vistas largas
nem grande sabedoria
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
ANTONIO ALEIXO
quarta-feira, 7 de março de 2012
O pouco que se diz melhor é o que fica não dito.
Porque tu amas o que eu digo com os ouvidos com que me ouço dizê-lo.
Eu próprio se me ouço falar alto, aos ouvidos com que me ouço falar alto
não me escutando do mesmo modo que o ouvido íntimo
com que me ouço pensar palavras.
Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar tantas vezes,
a mim próprio o que quis dizer,
os outros quanto não me entenderão!
De quão complexas inteligências não é feita a compreensão dos outros de nós?
Bernardo Soares/ F. Pessoa
No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
arrebatado em vastos turbillhões…
Num espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições…
- Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,
Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!…
Antero de Quental
segunda-feira, 5 de março de 2012
Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados."
Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
domingo, 4 de março de 2012
realidade que está sob ela: a linguagem dos fatos.
Essa linguagem, que contém a crítica de todos os modos de
expressão, traz em si a sua própria crítica.
A linguagem do homem total será a linguagem total.
Talvez o fim da velha linguagem das palavras.
Inventar esta linguagem é reconstruir o homem até
em seu inconsciente.
Na união rompida dos pensamentos, das palavras, dos gestos,
a totalidade se busca em meio à não-totalidade.
Ainda será preciso falar até o momento em que os
fatos nos permitam que nos calemos.
RAOUL VANEIGEM
ANOITECER
Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?
Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.
A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.
E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.
Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.
Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim - as palavras -
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.
CASSIANO RICARDO