sábado, 11 de maio de 2013

"A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro,
depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas.
Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove
a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor
a minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética ou por assunto.
 
  Há tempos encontrei certo coronel num corredor sombrio do hospital do Exército.
Ele afirmou que estivera comigo quando ainda era terceiro-sargento, mas seu rosto
na penumbra não me dizia grande coisa. Nem decerto o meu a ele, que me reconheceu
pelo nome. Mas aí a minha lembrança não era recíproca, e nesses casos, para não
magoar o próximo, a gente costuma dizer, ah, sim, claro, como vai, e fica por isso
mesmo.
 
Porque dá preguiça vasculhar a memória o tempo inteiro, mas ele acreditou que
eu me empenhava em recordá-lo, e quis colaborar. E só me atrapalhou mais ainda ao dizer,
em francês, que quarenta anos passam voando, não entendi se citava algum poeta.
Ia-me despedir quando ele mencionou as provas de artilharia na Marambaia,
e não sei porque não o fez desde o início, num instante tudo se iluminou.
Seria mesmo inútil revirar arquivos de nomes e rostos, porque minha memória tinha
guardado o sargento na paisagem. Era um dia de sol, e do alto da duna, eu contemplava
o trecho mais delgado da restinga, uma linha branquíssima de areia que o oceano
não tragava por capricho, ou por piedade, ou por desvelo maternal ou por sadismo.
As ondas espumavam simultaneamente, à direita e à esquerda da faixa de areia,
era como uma praia diante de um espelho. "
 

Chico Buarque -Leite Derramado

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