Às vezes penso na matéria para o livro a escrever como uma coisa que já existe:
pensamentos já pensados, diálogos já pronunciados, histórias já acontecidas, lugares e ambientes
já vistos; o livro não devia ser senão o equivalente do mundo não escrito traduzido em escrita.
Mas outras vezes julgo compreender que entre o livro a escrever e as coisas que já existem
só pode haver uma espécie de complementaridade: o livro devia ser a parte escrita do mundo
não escrito; a sua matéria devia ser o que não existe nem poderá existir senão quando for
escrito, mas cujo vazio o que existe sente obscuramente na sua imperfeição.
Vejo que seja como for, continuo a girar em torno da ideia de uma interdependência entre o
mundo não escrito e o livro que deveria escrever. É por isso que o escrever se me apresenta
como uma operação de tal peso que fico esmagado.
Ponho o olho no óculo e aponto-o para a leitora. Entre os seus olhos e a página voa uma
borboleta branca. Seja o que for que estivesse a ler, a verdade é que agora foi a borboleta a
prender a sua atenção. O mundo escrito tem o seu apogeu naquela borboleta.
O resultado para que devo tender é uma coisa precisa, íntima, leve.
Observando a jovem mulher na cadeira, deu-me uma necessidade de escrever a vista, ou seja
escrever não ela mas a sua leitura, de escrever qualquer coisa, mas pensando que tem de
passar através da leitura dela.
Agora, vendo a borboleta que pousa no livro. Queria escrever "a vista" tendo presente
a borboleta. Escrever por exemplo um crime atroz, mas que de algum modo se pareça com a
borboleta, que seja fino e leve como a borboleta. Poderia também descrever a borboleta mas
tendo presente a cena atroz de um crime, para que a borboleta se torne uma coisa assustadora.
Italo Calvino
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