segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Setowski

Uma bela vista oferece a vista a quem vê.

Conhecemos mais adormecidos que despertos,

mais cegos que perspicazes,

mais impotentes que amantes.



MICHEL SERRES
SILÊNCIO



Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.


OCTAVIO PAZ

Se o poeta é alguém, ele é alguém para quem as

coisas feitas importam muito pouco - alguém que é

obcecado pelo Fazer. Como todas as obsessões, a

obsessão de Fazer tem desvantagens; por exemplo,

meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo.

Mas felizmente eu preferiria fazer quase tudo o mais,

inclusive locomotivas e rosas. É com rosas e locomotivas

(para não mencionar acrobatas primavera eletricidade

Coney Island o 4 de Julho os olhos dos camundongos

e as Cataratas do Niágara) que meus "poemas" competem.

Eles também competem uns com os outros, com elefantes

e com El Greco.




e.e.cummings

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

" Na vida tudo termina bem:

se as coisas não estão bem,

é porque ainda não terminaram."

Guimarães Rosa

A doação é a troca impossível. A gente nunca entrega

sem contrapartida. Esta é uma visão idealisra da uma

cultura de equivalência. Mas numa forma mais radical,

no terreno de nossas trocas e ambivalentes paixões,

não é a doação que é impossível, mas sim a troca.

A doação além de possível é fatal, porque é a

encarnação da troca impossível. Se a doação

unilateral é impossível, por outro lado, o problema

da possibilidade unilateral de receber continua

intacto.

Mas existemseres capazes de receberem impunemente

sem retribuir e se tornam eles mesmos o objeto de

troca, a compensação viva do que foi doado.

Alguém capaz de bastar-se a si mesmo a ponto de nada

dar nem retribuir, mas que responde ao nosso desejo

obscuro de um ser ideal que não precisa de nós, mas do

qual precisamos.




JEAN BAUDRILLARD



Michel Ogier

Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires

foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral,

a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de

obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o

limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem

continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem

sabemos ousar porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa

convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos,

nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que

eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da

amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito

de indagar porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O poder analítico não deve ser confundido com a simples habilidade,

porque, se bem que seja o analista necessariamente engenhoso,

o homem engenhoso é muitas vezes, notavelmente incapaz de análise.




Edgar Alan Poe

Edward Ulan

O homem imagina ser grande e verifica que é pequeno;

imagina ser feliz e vê que é miserável; imagina ser perfeito

e descobre que está cheio de imperfeições; imagina ser o

objeto do amor e da estima dos homens, e descobre que

seus erros lhes causam apenas aversão e desprezo.

O embaraço em que se encontra então produz nele as

mais injustas e criminosas paixões que se possa imaginar,

pois concebe um ódio mortal contra a verdade que o

inculpa e o convence de seus erros.





PASCAL

Michael Maier

Então acordo de dentro e, lembrando, fico

de lado. E ouço correr, levando


grandiosos lenços contra a noite com estrelas


batendo nas patas


como magnólias pensando, abertas, correndo.


Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando


de lado, com as patas


no meio das letras, o rosto sufocado


correndo pelas portas grandiosas, as crinas


brancas batendo.


E eu ouço: é o som delas


com as patas negras, com as magnólias negras


contra a noite.



Correndo, lembrando, batendo.




HERBERTO HELDER




segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

" Se queres te salvar, arrisca tua pele, se queres salvar

tua alma, não hesites, aqui, agora, a entregá-la à

tempestade variável.

Não mudarás se não te entregares a essas circunstâncias

nem a esses desvios. Sobretudo, não conhecerás."



MICHEL SERRES
" Quero pensar com calma, em paz, espaçosamente,

nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da

cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra,

sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo.

Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície,

com seus fatos isolados, indisputáveis.

Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que

passa... Alguém que solidamente sentou-se numa

poltrona e olhou para o fogo e assim...

Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum

céu muito alto para atingir sua mente."



VIRGINIA WOOLF
Nós pedimos consistência
Nunca digam - "Isto é natural!"
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que reina a confusão,
Em que corre sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbítrio tem a força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Nunca diga - " Isto é natural!",
Estranhem o que não for estranho.
Tornem por inexplicável o habitual.
Nós pedimos consistência.
Nunca digam - " Isto é natural"!



BERTOLT BRECHT

sábado, 11 de dezembro de 2010

" Esperança é aquilo que tem plumas -

que se empoleira na alma -

e canta canção sem palavras - e nunca pára, nunca."


EMILY DICKINSON


Ninguém viu a grande batalha do simples, nunca

experimentamos senão as misturas,

só encontramos reuniões. Quando um amarelo cai

sobre um azul, vira um verde.

Mudam as nomeações das alianças.

Ninguém pode pensar a mudança a não ser sobre misturas:

quando se tenta pensar sobre o simples, só se

chega a milagres, saltos e mutações."



MICHEL SERRES
O par que me parece




Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leões em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.



Paulo Leminski

domingo, 5 de dezembro de 2010

Gostaria de passar a vida a dizer coisas incríveis

de dia e a fazer coisas inverosímeis à noite.



Oscar Wilde
O ser humano é uma parte de um todo a que chamamos “universo”,

limitado no tempo e no espaço. Vê-se a si mesmo, aos seus pensamentos

e emoções como estando separado do resto, numa espécie de ilusão óptica

da consciência. Esta ilusão é um tipo de prisão que nos restringe aos nossos

desejos pessoais e que limita o afecto a umas quantas das pessoas que

nos rodeiam. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos dessa prisão,

alargando os nossos círculos de compaixão de modo a abraçarmos todas

as criaturas vivas e o conjunto da natureza, com toda a sua beleza."



ALBERT EINSTEIN
Até amanhã



Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma

à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,

um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.

De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.



Eugénio de Andrade

sábado, 4 de dezembro de 2010

"O silêncio constrói o ninho, o habitat da sensação.

Sem ele, ela não existe."



MICHEL SERRES

“Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo,

que se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e

amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens,

depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado

nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua

presunção e reconheceram a sua insignificância.

(…) Quando perguntaram ao homem mais sábio que já existiu o que ele sabia,

ele respondeu que a única coisa que sabia era que nada sabia.

A sua resposta confirma o que se diz, ou seja, que a mais vasta parcela do

que sabemos é menor que a mais diminuta parcela do que ignoramos.

Em outras palavras, aquilo que pensamos saber é parte

— e parte ínfima — da nossa ignorância.”




Michel de Montaigne - ‘Ensaios’

AS COISAS



A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.


JORGE LUIS BORGES



(Tradução de Ferreira Gullar)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

" Por baixo de toda e qualquer ordem reluz uma sentença de morte."


ELIAS CANETTI

Willard Metcfat

Não há estrelas, não olhe para cima.
Não é por ser curioso que deve olhar embaixo das coisas
ou dentro de valises e gavetas.
Nenhuma saudade te fará olhar sobre os ombros, furtivo;
nenhuma confiança tornará teu olhra altivo, fixo à frente.
Não fite tuas mãos, como quem cometeu um crime.
Nem os pés, como quem recebe um pito.
Nunca olhe um muro fixamente, como quem pensa.
Nem arregale os olhos, como quem se espanta
ou viu um fantasma. Não exclame "É bonito!" diante da paisagem,
nem ria do que fazem à sua frente.
Contenha teus olhos.
Não fite jamais um cadáver.


NUNO RAMOS




Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses faz tempo
e beijos bem vindos
de primeiras de troca
e de último vagão.

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tato e sabor.

Sem um tremer de mais
me abraço a tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de ti.

Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição

Meus hóspedes concorrem
concorrem como sonhos
com seus rancores novos
sua falta de candura
eu lhe ponho uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de ti.

Porém o rosto de ti
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como vives
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagar a jornada.

As paredes se vão
fica a noite
as nostalgias se vão
não fica nada.

Já meu rosto de ti
fecha os olhos.

E é uma solidão
tão desolada.



MARIO BENEDETTI

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Edvard Munch

" A filosofia é a tentativa metódica e persistente

de levar a Razão ao mundo."


HORKHEIMER

Childe Hassam

Gosto de viver na obscuridade, no sentido material como no moral

- o homem de visão não goza de liberdade -, eu me exercito em

ver no escuro. Geralmente a luz parece grosseira, agressiva,

algumas vezes cruel. A noite brilha como um diamente negro,

reluz por dentro. Meu corpo de sombra sabe avaliar as sombras,

desliza entre elas, entre o silêncio delas, dir-se-ia que as conhece.

Podemos fazer quase tudo sem luz, salvo escrever.

Viver se satisfaz com penumbras, ler exige claridade.




MICHEL SERRES

Thomas Anshutz

Recordação de uma noite de verão



Do alto do céu um anjo enraivecido
tocou o alarme para a terra triste.
Endoidaram cem jovens pelo menos,
caíram pelo menos cem estrelas,
pelo menos cem virgens se perderam:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Nossa velha colméia pegou fogo,
nosso potro melhor quebrou a pata,
os mortos, no meu sonho, estavam vivos
e Burkus, nosso cão fiel, sumiu,
nossa criada Mári, que era muda,
esganiçou de pronto uma canção:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Os ninguéns exultavam de ousadia,
os justos encolhiam-se e o ladrão,
mesmo o mais tímido, roubou então:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Sabíamos da imperfeição dos homens,
de suas grandes dívidas de amor:
mas era singular, ainda assim,
o fim de um mundo que chegava ao fim.
Jamais tão zombeteira esteve a lua
e nunca foi menor o ser humano
do que foi nessa tal noite em questão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Perversamente em júbilo, a agonia
sobre todas as almas se abatia,
os homens imbuíram-se do fado
recôndito de cada antepassado
e, rumo a bodas de um horror sangrento,
seguia embriagado o pensamento,
o altivo servidor do ser humano,
este, por sua vez, mero aleijão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Pensava então, pensava eu, todavia,
que um deus negligenciado voltaria
à vida para me levar à morte,
mas eis que vivo e ainda sou o mesmo
no qual me converteu aquela noite
e, à espera desse deus, recordo agora
uma só noite mais que aterradora
que fez um mundo inteiro soçobrar:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.


ENDRE ADY

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Anne Bachelier

O homem não vive uma centena de anos, mas
se preocupa o suficiente para mil.



DITADO ORIENTAL

Lauri Blank

" O caos informe do esquecido que nos acompanha silencioso,

não é inerte nem ineficaz, mas, pelo contrário, age em nós mesmos

com força não inferior à das lembranças conscientes, mesmo que

de forma diferente.

Há uma força do esquecido, que não pode ser medida em termos

de consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado ou

satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido,

como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível."




MICHEL SERRES
O que ouviu os meus versos disse-me:
que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor
e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi: nem todos, ninguém.
Porque todos amam as flores por serem belas,
e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes
e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores,
diretamente.
Eu amo as árvores por serem árvores,
sem o meu pensamento.




ALBERTO CAEIRO

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sérgio Telles

Que a misericórdia divina seja infinita significa

simplesmente que ela está a uma distância infinita.




JOHN UPDIKE

John Singer Sargent

Nunca pretendi ser senão um sonhador.

Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser...


À vida nunca pedi senão que passasse por mim

sem que eu a sentisse.

Do amor apenas exigi que nunca deixasse

de ser um sonho longínquo...

A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda...

e alinho na minha imaginação, confortavelmente,


figuras que habitam na minha vida interior, constantes e vivas.

Tenho um mundo de amigos dentro de mim,

com vidas próprias, definidas e imperfeitas.



FERNANDO PESSOA

Edvard Munch

O outono toca realejo

No pátio da minha vida.

Velha canção, sempre a mesma,

Sob a vidraça descida…

Tristeza? Encanto? Desejo?

Como é possível sabê-lo?

Um gozo incerto e dorido

de carícia a contrapelo…

Partir, ó alma, que dizes?

Colhe as horas, em suma…

mas os caminhos do Outono

Vão dar em parte alguma!

QUINTANA

domingo, 21 de novembro de 2010

Adriaen Brouwer

" A sociedade é um contato entre mortos,

os vivos e os que não nasceram ainda."





Edmund Burke

Bruegel

" Assim como na segunda metade do verso, os maus poetas buscam

o pensamento que se ajusta à rima, na segunda metade da vida,

tendo se tornado mais receosas, as pessoas buscam as ações,

atitudes e situações que combinem com as de sua vida anterior,

de modo que exteriormente tudo seja harmonioso: mas sua vida

já não é dominada e repetidamente orientada por um pensamento

forte; no lugar deste surge a intenção de encontrar uma rima."





NIETZSCHE



Edvard Munch

ABRO AS VEIAS: IRREPRIMÍVEL...


Abro as veias: irreprimível,
Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.

Pelas bordas - à margem -
Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.



Marina Tzvietáieva



(Tradução de Augusto de Campos)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

" Há 30 anos, quando eu queria interessar meus alunos,
eu lhes falava de política; quando queria fazê-los rir,
falava de religião.

Hoje, é o contrário: quando quero interessá-los,
falo de religião; quando quero fazê-los rir, falo de política."


MICHEL SERRES

Raoul Dufy

PARA ALÉM DO PRINCIPIO DE REALIDADE


Quanto tempo tem sido desperdiçado durante o destino

do homem, na luta para decidir como será o próximo mundo do homem!

Quanto mais intenso o esforço para descobrir, tanto menos sabemos

sobre o mundo presente em que vivemos. Aquele mundo encantador

que conhecemos, em que vivemos, que nos deu tudo o que tinha,

é aquele que, segundo os pregadores e os prelados, deve estar

menos em nossos pensamentos. O homem foi recomendado, ordenado,

desde o dia em que nasceu, a dizer-lhe adeus. Oh, já chega que se

abuse assim desta agradável terra! Não é uma triste verdade que ela

seja o nosso lar. Não nos desse ela mais do que um simples abrigo,

simples vestuário, simples alimento, adicionando-se o lírio e a rosa,

a maçã e a pêra, e seria um lar adequado para o homem mortal ou imortal.



SEAN O'CASEY



Edvard Munch

Doçura



Nasci dura, heróica, solitária e em pé.
E encontrei meu contraponto na paisagem
sem pitoresco e sem beleza.
A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual.
E desafio a morte.
Eu - eu sou a minha própria morte.
E ninguém vai mais longe.
O que há de bárbaro em mim
procura o bárbaro e cruel fora de mim.
Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas

que vacilam às chamas da fogueira.
Sou uma árvore que arde com duro prazer.
Só uma doçura me possui:
a conivência com o mundo.
Eu amo a minha cruz,
a que doloridamente carrego.
É o mínimo que posso fazer de minha vida:
aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.



Clarice Lispector

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A poesia é um nexo entre dois mistérios:

o do poeta e o do leitor.


DÁMASO ALONSO

Christian Krohg

Existem duas categorias de espíritos: os que amam o processo

e os que amam o resultado, uns se interessam pelo desenrolar,

pelas etapas, pelas expressões sucessivas do pensamento ou

da ação; os outros, pela expressão final, excluindo todo o resto.

Os últimos nos apresentam uma fórmula, sem revelar o caminho

que os levou a ela. Seja por pudor, seja por esterilidade, não

conseguem livrar-se da superstição da concisão. Gostariam

de dizer tudo numa página, numa frase, numa palavra.

Alguns o conseguem, raramente, é bom que se diga: o

laconismo deve se resignar ao silêncio, se não deseja cair na

profundidade falsamente enigmática.


EMIL CIORAN

Edvard Munch

Doce ira, doce mal, doce brandura,
Doce afã, doce peso que hei sentido,
Doce falar tão docemente ouvido
E que é doce de luz ou de aura pura.

Alma, sofre calada o que tortura,
Mitiga o doce afã que te há ofendido
Com o doce louvor que hás recebido
Por esta que é minha única ventura.

Dia virá que suspirando diga
Alguém cheio de inveja: Assáz sofrera
Este por belo amor e seu enredo.

Outros: Ó sorte dura e tão imiga!
Por que esta doce dama não nascera
Pouco mais tarde ou eu pouco mais cedo?

              • Francesco Petrarca

                (Tradução de Almansur Haddad)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sorolta Ban

Nenhuma sociedade está pronta para o fato de que

nem todos desejam a mesma coisa.




ROLAND BARTHES

Vincent van Gogh

" E ainda é a vida!

Mas se a danação é eterna!

Um homem que deseja mutilar-se é

bem condenado, não é mesmo?

Eu me creio no inferno, logo estou nele (...)

E pensemos em mim. Isso me faz sentir

pouca falta do mundo.

Tenho a sorte de não sofrer mais.

Minha vida não passou de doces loucuras, é lastimável."





" Quis dizer o que está dito, literalmente

e em todos os sentidos."





ARTHUR RIMBAUD

Henri Cartier Bresson

No Tratado das Grandezas do Ínfimo
Estava escrito:
Poesia é quando a tarde
Está competente para dálias.
É quando ao lado de um pardal
O dia dorme antes.
Quando o homem faz
Sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
MANOEL DE BARROS