terça-feira, 30 de março de 2010
O perigo das palavras cruzadas é nos inocularem às vezes,
para todo o sempre, os mas estapafúrdios conhecimentos.
A matemática foi recomendada por Pinel como preservativo
dos distúrbios mentais. Que resta então?
Resta-nos um passatempo esquecido: o proveitoso, o
delicioso vício da leitura.
MARIO QUINTANA
quinta-feira, 25 de março de 2010
Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória.
As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas;
o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de
estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha
caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas
sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava
de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra
fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia
amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado
vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por
inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas
também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o
primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso,
casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença
imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e
noutra margem do mar, as cidades dos homens e os
seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé
de uma montanha de cume incerto, onde bem podia
haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias
que recebeu como recebia a realidade, sem indagar
se eram verdadeiras ou falsas.
JORGE LUIS BORGES
Que me enchas a casa de perfumes e de meias
de vidro e me quebres,
com as mais recentes bandas sonoras da vida,
o ritmo dos versos que trato de escrever,
isso posso compreendê-lo.
Compreendo
a arritmia na aritmética, o desprezo que tens
pelos Áustria, os corações vermelhos
na brancura virgem das tuas folhas,
as tuas primeiras dores de mulher,
compreendo isso tudo.
Mas não me provoques, minha filha:
não me tragas para casa tão doces miúdas de quinze anos
com olhos inexplicáveis, com olhares
ainda mais inexplicáveis. Diz-lhes que não pintem
os lábios ao meu espelho, que não te emprestem roupa.
Não metas no meu inferno esses diabos
que me tratam por senhor. Sê boa filha
e evita ao teu pai o duro lance
de morrer de amor pela tua melhor amiga.
PEDRO SEVILLA
terça-feira, 23 de março de 2010
Só em mim, o solitário, brilham interminaveis as estrelas da noite. A
fonte de pedra suspira a sua canção mágica, a mim, só a mim, o que
as sombras coloridas das nuvens errantes, movem como sonhos sobre o
campo aberto. Nem casa nem terra cultivada, nem floresta, nem
privilégios de caça me são concedidos. O que me pertence, não pertence
a ninguém, O caminho estreito, mergulhado por trás do véu dos bosques,
o mar assustador, o som de um pássaro na brincadeira das crianças, O
choro e o canto, de noite, em solidão, de um homem secretamente
apaixonado. Os templos dos deuses também são minas, e minam os bosques
aristocráticos do passado. E não menos, a abóbada luminosa do céu que é
no futuro a minha casa: Frequentemente em pleno vôo de desejo, sobem
acima as minhas tempestades de alma, para fixar no futuro de homens
benditos, amor, superando a lei, amor das pessoas às pessoas. De novo
os encontro, nobremente transformados: fazendeiro, rei, comerciante,
marinheiro ocupado, pastor e jardineiro, todos eles agradecidamente,
celebram o festival do mundo futuro. Só o poeta perde, o solitário que
olha, o portador de desejo humano, a imagem pálida da incerteza do
futuro. A realização do mundo não tem mais nenhuma necessidade. Muitas
flores Murcham na sua sepultura, mas ninguém se lembra-se dele.
HERMANN HESSE
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
domingo, 21 de março de 2010
Saber organizar a vida não confusamente, no tumulto dos fatos,
mas com percepção e bom senso. A vida sem descanso é dolorosa,
assim como um longo dia de viagem sem trégua.
O que torna a vida agradável é uma variedade de aprendizado.
Para uma vida bela, gaste a primeira jornada conversando com os
mortos: nascemos para conhecer e conhecer a nós mesmos,
e os livros nos transformam fielmente em pessoas.
Passe a segunda jornada com os vivos: contemple tudo o
que há de bom no mundo. Nem todas as coisas podem ser
encontradas no mesmo lugar.
A terceira jornada pertence inteiramente a você:
filosofar é o prazer mais elevado de todos.
BALTASAR GRACIÁN
DESCRIÇÃO HONESTA DE MIM PRÓPRIO BEBENDO
UM WHISKY NO AEROPORTO, DIGAMOS DE MINEÁPOLIS
Os meus ouvidos escutam cada vez menos as conversas, os meus
olhos enfraquecem, continuando porém insaciados.
Vejo as pernas delas de mini-saia, de calças,
ou de tecidos vaporosos,
Espreito cada uma, os seus rabos e coxas, pensativo,
embalado por sonhos porno.
Ó lascivo velho jarreta, estás com os pés para a cova
e não para os jogos e brincadeiras da juventude.
Mas não é verdade, faço apenas aquilo que sempre fiz,
compondo as cenas desta terra, movido pela
imaginação erótica.
Não desejo justamente estas criaturas, desejo tudo,
e elas são como um sinal de convívio extático.
Não tenho culpa de sermos feitos assim, metade de
contemplação
desinteressada e metade de apetite.
Se depois de morrer for para o Céu, lá,
terá de ser como aqui,
apenas hei-de livrar-me dos sentidos entorpecidos
e dos ossos pesados.
Transformado em puro olhar, continuarei a absorver
as proporções
do corpo humano, a cor dos lírios, a rua parisiense
na madrugada de Junho.
Enfim, toda a inconcebível, a inconcebível pluralidade
das coisas visíveis.
CZESLAW MILOSZ - Nobel 1980
quarta-feira, 17 de março de 2010
A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica
conservará alguma desta liberdade e imparcialidade no mundo da ação e da emoção.
Encarará os seus propósitos e os seus desejos como partes do todo e com a falta
de persistência que resulta de os ver como fragmentos minúsculos num mundo no
qual nada mais é afetado por qualquer ação humana. A imparcialidade que na
contemplação é o desejo puro da verdade, é a mesma qualidade da mente que na
ação é a justiça e na emoção é o amor universal que pode ser dado a tudo e não
apenas aos que consideramos úteis ou dignos de admiração. Por conseguinte, a
contemplação alarga não apenas os objetos dos nossos pensamentos, mas também
os objetos das nossas ações e das nossas afecções; faz-nos cidadãos do universo e
não apenas de uma cidade murada em guerra com tudo o resto.
A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da sujeição a esperanças e
temores mesquinhos consiste nesta cidadania do universo.
BERTRAND RUSSELL
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus
EUGENIO DE ANDRADE
segunda-feira, 15 de março de 2010
Desde cedo, os mais velhos procuram mostrar aos novatos
na vida que nada resiste ao poder circunspecto da maré,
a qual não faz alarde nem estardalhaço, mas ignora o que
lhe esteja à frente e cumpre infalivelmente o seu curso,
lição que, se levada em conta, conduz a uma existência
bem menos inquieta do que ela sempre procura ser.
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos, como
algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão
de ótica de sua consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão
que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao
afeto apenas pelas pessoas mais próximas.
Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão,
ampliando nosso círculo de compaixão, para que abranja todos
os seres vivos e toda a Natureza em sua beleza.
Ninguém conseguirá atingir completamente este objetivo, mas
lutar pela sua realização já é por si só, parte de nossa
libertação e o alicerce de nossa segurança interior.
ALBERT EINSTEIN
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
MIA COUTO
sexta-feira, 12 de março de 2010
Começo por pensar que todas as pessoas são iguais.
Talvez por comodidade, talvez por segurança, começo
por supor que todas as pessoas, na sua infinita variedade
de passados, presentes e futuros, são iguais. É partindo
desse pressuposto que digo "nós". Não o "nós" de apenas
eu e tu, não o "nós" de país ou língua, mas o "nós" meu,
teu e deles, de países e línguas, de todos aqueles que não
nos estão a ouvir. E digo: nós temos um mundo no nosso
interior. Digo: é fascinante a história de tudo aquilo que
fomos, que passou e que nunca foi esquecido porque nunca
foi identificado. Sem que nunca tenha sido arquivado de
uma forma consistente, catalogado ou sequer registado,
acabamos por chamar "caos" ou "alma" a esse mundo.
Na fila do supermercado ou numa esplanada, junho,
acabamos por chamar-lhe "pensamento". E mesmo
durante o instante em que dizemos essa palavra,
"pen-sa-men-to", somos assaltados por uma sucessão
de frases, sobrepostas às vezes, ou por imagens,
ou por melodias, ou por palavras soltas, ou por tudo isto,
sobreposto, misturado, em luta ou em harmonia.
José Luis Peixoto - escritor português
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num intimo pudor,
- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
MIGUEL TORGA
quarta-feira, 10 de março de 2010
Lygia Fagundes Telles
Não restará na noite uma estrela.
Não restará a noite.
Morrerei, e comigo a soma
do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Transformarei em pó a história, em pó o pó.
Estou mirando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Deixo o nada a ninguém.
JORGE LUIS BORGES
domingo, 7 de março de 2010
e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante
existência, onde tudo o que se faz presente é
divinizado, não importando se seja bom ou mau.
E assim, é possível que o observador fique realmente
surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida
e se pergunte com qual filtro mágico no corpo
puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida
a ponto de se depararem, para onde quer que
olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal,
“pairando em doce sensualidade”,
da própria existência deles.
Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia
Não é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro
nas montanhas do meu país,
No curso sinuoso dos seus rios,
Nas ondas do mar,
Nas nuvens do céu,
No corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o Universo.
O Universo curvo de Einstein.
Oscar Niemeyer
terça-feira, 2 de março de 2010
A Beleza. No mundo não existe.
Ai de quem coma alma inda mais triste
Nos seres transitórios quer colhê-la!
Acanhe-se a alma porque não conquiste
Mais que o banal de cada cousa bela,
Ou saiba que ao ardor de querer havê-la -
À Perfeição - só a desgraça assiste.
Só quem da vida bebeu todo o vinho,
Dum trago ou não, mas sendo até o fundo,
Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;
Conhece o tédio extremo da desgraça
Que olha estupidamente o nauseabundo
Cristal inútil da vazia taça.
Fernando Pessoa