Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória.
As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas;
o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de
estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha
caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas
sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava
de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra
fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia
amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado
vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por
inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas
também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o
primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso,
casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença
imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e
noutra margem do mar, as cidades dos homens e os
seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé
de uma montanha de cume incerto, onde bem podia
haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias
que recebeu como recebia a realidade, sem indagar
se eram verdadeiras ou falsas.
JORGE LUIS BORGES
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