quinta-feira, 29 de abril de 2010
o poeta é mercador
traficante de caminhos
que vende raios,
sinfonias
e horizontes. frugal mercador de eternidades
– porta a porto –
aos quatro cantos do luar
ao mar
ao ar
sob o tempo
e o temporal.
o poeta corre o risco
entre o amor livre
e a palavra.
está sempre atrás do pano
em plena corda bamba
do mistério.
e atravessa submerso as metrópoles
dos olhares
feito um louco solitário
que come fogo.
SALGADO MARANHÃO
Conta-se que havia uma ilha, que ficava em Algum Lugar, em que os habitantes desejavam intensamente ir para outra parte e fundar um mundo mais sadio e digno. O problema é que a arte e a ciência de nadar e navegar ainda não tinham sido desenvolvidas - ou talvez tivessem há muito esquecidas. Por isso, havia habitantes que simplesmente se nagavam a pensar nas alternativas à vida na ilha, enquanto outros tentavam encontrar soluções para os seus problemas, sem preocupar-se em recuperar o conhecimento de como cruzar as águas. De vez em quando, alguns ilhéus reinventavam a arte de nadar e navegar. Também de vez em quando chegava a eles algum estudante, e então acontecia um diálogo assim:
- Quero aprender a nadar.
- O que quer fazer para conseguir isto?
- Nada. Só quero levar comigo uma tonelada de repolho.
- Que repolho?
- A comida que vou precisar no outro lado, ou seja lá onde for.
- Mas há outras coisas pra comer no outro lado.
- Não sei o que quer dizer. Não tenho certeza. Tenho que levar meu repolho.
- Mas assim não vai poder nadar. Uma tonelada de repolho é uma carga muito pesada.
- Então não posso aprender. Para vc, meu repolho é uma carga. Para mim, é um alimento essencial.
- Suponhamos que - como numa alegoria - os repolhos representem ideias adquiridas, pressupostos ou certezas.
- Hum... Vou levar meus repolhos para onde haja alguém que entenda as minhas necessidades.
( A Árvore do Conhecimento - Humberto Maturana)
segunda-feira, 26 de abril de 2010
fora da regra e da uniformidade: a saída.
O que há de interessante? O acontecimento. O nascimento.
O quente raro, não o frio regular.
O despertar; nem o sono, nem o sonho.
A invenção da sobrevivência.
A saída da caverna e do túmulo.
Pensem sempre em sair.
Em nascer para vencer a morte.
O que existe de interessante? O desvio, o surgimento.
A saída da agonia: vida, pensamento criativo,
amor, coragem.
O nascimento, a vitória da vida contingente sobre a morte necessária.
MICHEL SERRES
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão ...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos ...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir. . .
ALBERTO CAEIRO
quarta-feira, 21 de abril de 2010
pagam com juro o que o homem lhes confia.
Nem sempre o vento favorece a nave
no seu rumo inconstante.
Menos prazeres, somados a mais penas
eis a sorte infalível dos amantes.
Que o espírito preparem
para o jugo suportar das muitas
provações a que o amor obriga.
São as lebres do Atos e as bagas sustentadas
pela árvore de Palas de folhagem sombria,
são as conchas da praia e as ovelhas
que pastam no monte Hibla
tão numerosas quantas são as penas
com que o amor castiga.
Os dados que recebem os amantes
estão de fel embebidos.
Ovídio – Arte de Amar
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Milan Kundera - A Imortalidade
Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...
Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um Outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes
-Um outro que eu não posso acorrentar...
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
sexta-feira, 16 de abril de 2010
"Não se conhecem as nascentes do Nilo ... não foi dado aos
olhos do homem ver o rei dos rios em estado de simples córrego;
assim também nenhum ser humano verá Julien fraco, e antes
de tudo porque ele não o é. Mas eu tenho um coração fácil
de comover; a mais simples palavra, se for dita com um acento
verdadeira, pode enternecer minha voz e mesmo fazer correrem
minhas lágrimas. Quantas vezes os corações áridos não me
desprezaram por causa desse defeito! Acreditavam que eu
pedia misericórdia: eis o que não se deve suportar."
Julien Sorel, personagem de O Vermelho e o Negro - STENDHAL
Mulher nua
o teu corpo, belo como o lençol da madrugada,
e lento como o teu abrir de pálpebras
no instante de acordar. Vou buscá-lo
a um armário de sinónimos, por entre
as palavras redondas do amor. Toco
os teus lábios com as suas sílabas,
sentindo a branca humidade da noite
no leve murmúrio em que pousam
os meus olhos. E vou descobrindo a luz
das palavras que tiro de cima de ti, para
que apenas te cubra o adjectivo
que te veste, nua, nos braços
que te procuram.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Em todo homem dorme um profeta, e quando ele acorda,
há um pouco mais de mal no mundo.
A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge
de profundidades desconhecidas ao instinto de preservação.
Cada um espera seu momento para propor algo:
não importa o quê. Tem uma voz: isto basta.
Pagamos caros por não ser surdos nem mudos.EMIL CIORAN
Passado, Presente, Futuro
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.
Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.
Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
José Saramago
terça-feira, 13 de abril de 2010
livros, etc), para que passem para nós, é necessário que os
definamos como escritos por nós. E que, ao mesmo tempo,
os tornemos outros, deformando-os por amor, desde que
por eles fomos seduzidos.
O que buscamos, nos conceitos que desejamos, é que
alguma coisa ocorra: uma nova aventura, uma nova
conjunção amorosa; e, por isso, determinados conceitos
do autor amado é a de que eles fiquem lá, como signos
de nós mesmos, inspirando-nos a passar do prazer de
ler ao desejo de escrever.
ROLAND BARTHES
(Tradução de Joaquim Fontes)"Parece-me igual aos deuses
ser aquele homem que, à sua frente sentado,
de perto, doces palavras, inclinando o rosto,
escuta,
e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro,
me faz com pavor bater o coração no peito;
eu te vejo um instante apenas e as palavras
todas me abandonam;
a língua se parte; debaixo da minha pele,
no mesmo instante, corre um fogo sutil;
meus olhos me vêem; zumbem
meus ouvidos
um frio suor me recobre, um frêmito me apodera
do corpo todo, mais verde que
as ervas
eu fico
e que já estou morta
parece (...)
Mas (...)".
SAFO - fragmentos de um poema
segunda-feira, 12 de abril de 2010
e muitas vezes contra a nossa vontade. A partir de momento em que
queremos experimentá-lo (a partir do momento em que decidimos experimentá-lo,
como Dom Quixote decidiu amar Dulcineia), o sentimento já não é sentimento,
mas imitação de sentimento, sua exibição.
É o que correntemente se chama histeria.
É por isso que o homo sentimentalis (ou por outras palavras, o homem
que erigiu o sentimento em valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus.
O que não quer dizer que o homem que imita um sentimento o não experimente.
O ator que desempenha o papel do velho rei Lear sente no palco, frente aos
espectadores, a autêntica tristeza de um homem abandonado e traído,
mas esta tristeza evapora-se no preciso instante em que a peça termina.
É por isso que o homo sentimentalis, logo a seguir a ter-nos assombrado
com os seus grandes sentimentos, nos desconcerta
com a sua inexplicável indiferença.
MILAN KUNDERA - A IMORTALIDADE
ELEGIA
Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!
Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;
Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto.
A imensa terra, o céu sublime e grande;
Observai, procurai, coleccionai os factos,
Balbuciai o mistério da Natureza.
Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,
Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;
À prova me puseram, deram-me Pandora,
De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;
Impeliram-me para a boca dadivosa,
Separaram-me dela, e assim me aniquilam.
GOETHE
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Na pior das hipóteses, a vida humana não é trágica,
mas desprovida de sentido.
A alma é quebrada, mas a vida persiste.
Ao falhar a vontade, a máscara da tragédia cai no chão.
O que permanece é apenas sofrimento.
O último sofrimento não pode ser contado.
Se os mortos pudessem falar, não os entenderíamos.
Somos sábios por nos apegarmos a um arremedo de
tragédia: a verdade desvelada apenas nos cegaria.
Como Czeslaw Milosz escreveu:
" Nem -um
Impunemente dá a si mesmo
os olhos de um deus."
JOHN GRAY - do livro Cachorros de Palha
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mário Quintana
quarta-feira, 7 de abril de 2010
... Talvez a velhice seja outro começo, talvez seja
possível voltar ao tempo mágico da infância,
àquele tempo anterior ao pensamento linear
e aos preconceitos, quando eu percebia
o universo por meio dos sentidos exaltados
de um demente e estava livre para crer no
inacreditável e explorar mundos que depois,
na idade da razão, desapareceram.
Já não tenho muita coisa a perder,
Nada para defender:
Será isso a liberdade?
ISABEL ALLENDE
terça-feira, 6 de abril de 2010
Por mais que os escritores escrevam,
Os músicos componham e cantem,
Os pintores e escultores joguem com
Formas, cores e luzes, - por mais
Que a arte expresse o profundo
Sentimento humano, embora dance
À nossa frente e nos convoque
Até o último fio de lucidez,
O essencial não tem nome nem
Forma: é descoberta e assombro,
Glória ou danação de cada um.
LYA LUFT
domingo, 4 de abril de 2010
o ondulante, o flexível, o
pretensamente frívolo.
Permaneçamos curiosos, e até vivamos por curiosidade
Avancemos algumas vezes a ignorância e desconfiemos
dos pregadores da verdade.
A Verdade maiúscula é o paradigma das nossas ilusões.
Só podemos pretender
algumas pequenas verdades de passagem,
rapidamente declaradas, sempre discutidas,
frequentemente esquecidas.
Devemos preservar nossa fragilidade como devemos
salvar o inútil.
A fragilidade nos
aproxima uns dos outros e o inútil nos permite
a evasão, é a nossa saída de emergância.
Jean Claude Carrière
AMOR DE TARDE
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer "e aí?" e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.
MARIO BENEDETTI