terça-feira, 29 de junho de 2010
O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo.
É como se a visão se formasse em seu âmago ou como se
houvesse entre ele e nós uma familiaridade tão
estreita como a do mar e da praia.
No entanto, não é possível que nos fundemos nele nem que
ele penetre em nós, pois então a visão sumiria no momento
de formar-se, com o desaparecimento ou do vidente ou do
visível. Não há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que,
em seguida, se oferecessem a quem vê, não há um vidente,
primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas,
mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a
não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos
sonhar ver "inteiramente nuas", porquanto o olhar as envolve
e as veste com sua carne.
MERLEAU-PONTY
CANÇÃO PARA OS HOMENS DE INGLATERRA
Homens de Inglaterra, por quê lavrar
Para os senhores que vos derrubam?
Porquê tecer com esforço e cuidado
As ricas roupas que vestem os vossos tiranos?
Porquê alimentar, e vestir, e proteger,
Do berço até à sepultura,
Aqueles ingratos zângãos que
Exauririam o vosso suor como beberiam também o vosso sangue?
Porquê, Abelhas de Inglaterra, forjar
Tantas armas, grilhetas e chicotes
Se esses zângãos sem ferrão podem destruir
O produto forçado da vossa labuta?
PERCY B. SHELLEY
quarta-feira, 23 de junho de 2010
o caos com arte, conservando os blocos de sensações das experiências
passadas em obras. O valor das obras é considerado pela virtuosidade
por elas apresentada. Trata-se do êxtase que a sua executação material
atualiza, coloca em ato. Ouvir, cheirar, tocar, olhar, sentir além dos sentidos.
Trata-se de extrair blocos de sensações da matéria.
Matéria que se pesquisa, que se estuda, que se corta para
produzir imagens. Imagens que mostram a vida que a matéria compõe.
Matéria que se expressa transformada pelo desejo de quem nela
excursiona, sem outra finalidade que não a de traçar as forças
singulares de uma vida. Saber uma matéria é diferente de dominar
uma área de conhecimento. Saber uma matéria é viver com ela,
elemento destacado estrategicamente da terra, numa relação
que entre a matéria trabalhada e aquele que a estuda
não há distinção."
GILLES DELEUZE
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Escrever deve ser um ato destituido de vontade. A palavra, como a
profunda corrente oceânica, tem que flutuar da superficie de seu
próprio impulso. Uma criança não tem nenhuma necessidade de escrever,
é inocente. Um homem escreve para destilar o veneno que acumulou
devido à sua maneira falsa de vida. Está tentando recapturar sua
inocência e no entanto tudo o que consegue fazer (escrevendo) é
inocular no mundo o vírus de sua desilusão. Homem nenhum colocaria
uma palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo em que
acredita. Sua inspiração é desviada na fonte. Se é um mundo de
verdade, de beleza e magia que deseja criar, por que põe milhões
de palavras entre si e a realidade daquele mundo?
Por que retarda a ação - a não ser que, como outros homens,
o que realmente deseje seja o poder, a fama, o sucesso?
sacudo minha neve branca ao sol que foge,
desfaço minha carne em redemoinhos de poeira,
entrego-me à terra para crescer nas ervas que amo.
Se queres ver-me novamente,
procura-me sob teus sapatos;
Dificilmente saberás quem sou, ou o que significo.
Mas, se não conseguires me encontrar, não desanimes;
O que não está numa parte está noutra.
Nalgum lugar estarei a tua espera.
WALT WHITMAN
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Nasci sem pele. Um dia sonhei que estava nu num jardim e que cuidadosa e completamente me tiravam a pele como a um fruto. Não ficou nem um resto de pele no meu corpo. Foi toda mas toda retirada com cuidado e só depois me disseram para andar, viver e correr. A princípio movimentei-me devagar, o jardim era tremendamente macio e eu sentia de uma precisa o jardim-doçura, não na superfície do corpo, mas atravessando-me o ar doce e os perfumes, como agulhas penetrando todos os meus poros em sangue. Todos os poros estavam abertos e respiravam calor, doçura e cheiros. O corpo totalmente invadido, penetrado, reagindo, a mais pequena célula e poros vivos respirando e tremendo com prazer. Gritei de dor. Corri. E ao correr o vento chicoteava-me e as vozes das pessoas eram chicotes dirigidos a mim. Ser tocado! Acaso sabem vocês o que é ser tocado por um ser humano?
ANAIS NIN
Humilde, terno, numa tumba encantadora,
No monumento insensível,
Tanto de sombras, de abandonos, e de amores desperdiçados,
Que já se fazem em sua graça cansada,
Eu morro, eu morro em você, me caio e eu caio,
Mas dificilmente fico abatido embaixo do sepulcro,
Do qual a extensão das cinzas me convidam fundir-me,
Este óbvio morto, desses que ainda voltam a vida,
Tremores, dos olhos ativos, iluminados que mordam,
E sempre puxando-me para uma nova morte
Mais preciosa que vida.
PAUL VALÉRY
terça-feira, 1 de junho de 2010
Conheço rios tão antigos quanto o mundo e mais
[ velhos que o fluxo de sangue humano
[ nas veias humanas.
Minha alma se tornou profunda como os rios.
Banhei-me no Eufrates quando eram jovens as
[ auroras.
Construí minha cabana junto ao Congo e ele
[ me cantou canções de ninar.
Olhei para o Nilo e acima dele levantei as
[ pirâmides.
Ouvi o canto do Mississippi quando Abe Lincoln
[ desceu até New Orleans e vi seu seio
[ lamacento tornar-se ouro, ao pôr-do-sol.
Conheço rios:
Antigos, cinzentos rios.
Minha alma se tornou profunda como os rios.
LANGSTON HUGHES