domingo, 29 de agosto de 2010
Só podemos reter o passado como uma imagem que
no instante em que se deixa reconhecer lança um clarão
que não voltará a ver-se.
Irrecuperável é, com efeito, toda a imagem do passado
que corre o risco de desaparecer com cada instante
presente que nela não se reconheceu.
A feliz notícia trazida pelo ofegante historiógrafo do passado
sai de uma boca que, talvez no próprio instante em
que se abre, fala já no vazio.
Walter Benjamin - 'Teses Sobre a Filosofia da História'
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
Aquele que agradece que haja música na terra.
Aquele que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O tipógrafo que compõe tão bem esta página que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
Aquele que agradece a presença na terra de Stevenson.
Aquele que prefere que sejam os outros a ter razão.
Essas pessoas, que se ignoram, vão salvando o mundo.
Jorge Luís Borges
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
como eles
e natureza e humano reinavam no mundo.
Mas veio um deus ususrpador e único
e tornou o mundo incompreensível
porque o seu reino não era deste mundo.
E até hoje ninguém soube
por que então ele expulsou os outros deuses
e ficou reinando sozinho
e fez todos os homens pecarem
- coisa que eles jamais haviam feito antes -
Porque pecar com inocência não é pecar...
E os homens conheceram o terror maravilhoso do pecado
E assim o novo deus lhes trouxe
uma volúpia nova.
MARIO QUINTANA
terça-feira, 17 de agosto de 2010
voluntariamente contido por respeito a ela.
Ela fica feliz em mantê-lo em suspenso em sua
imaginação, mas com isso aumenta a obsessão
naquele que a deseja, de modo que é no final possuída
por um homem obcecado por seu próprio desejo.
E é então que a mulher se torna verdadeiramente
objeto: quando é desejada apenas por um homem ansioso
do próprio desejo. Mas enfim isso também resolve o
problema da mulher, que prefere gozar por interposição
de um desejo eternamente insatisfeito.
JEAN BAUDRILLARD
A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
terça-feira, 10 de agosto de 2010
Um sentimento é profundo porque consideramos profundo
o pensamento que o acompanha. Mas o pensamento
profundo pode estar muito longe da verdade.
Se retirarmos do sentimento profundo os elementos
intelectuais a ele misturados, resta o sentimento forte,
e este não é capaz de garantir, para o conhecimento,
nada além de si mesmo, tal como a crença forte prova
apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se crê.
NIETZSCHE
Junto do mar, que erguia gravemente
À trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,
Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...
Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?
Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
ANTERO DE QUENTAL
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Na fé e na dúvida, o tédio nos visita
como o sono; no instante em que a vontade
afrouxa sua tensão.
Mas quando a fé e a dúvida se deixam descobrir
na sua ingênua, profunda relação,
e sobrevém o assombro frente
à maravilhosa indiferença de Deus,
a gente recupera a calma para
sempre, e a calma para sempre é o tédio.
MARIO BENEDETTI
BALADA DOS ENFORCADOS
Irmãos humanos que depois de nós viveis.
Não tenhais duro contra nós o coração.
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis.
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada.
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
Chamamo-vos irmãos : disso não desdenheis.
Apesar de a justiça a nossa execução
Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis
Que nem todos possuem juízo firme e são.
Exculpai-nos – que mortos, mortos, nos sabeis -
Com o filho de Maria, a nunca profanada;
A sua graça, para nós, não finde em nada,
No inferno não nos venha o raio despenhar.
Ninguém nos atormente, a vida já acabada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;
O sol nos ressequiu até à negridão;
Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! -,
Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.
Em tempo algum tranqüilos nos contempiareis:
Para cá, para lá, o vento de virada
A seu talante leva-nos , sem dar pousada;
Mais que a dedal, picam-nos pássaros no ar.
Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
Príncipe bom Jesus, de universal mandar,
Guardai-nos, ou o infemo nos arrecada:
Lá nada temos a fazer, nada a pagar.
Homens, aqui a zombaria é inadequada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
François Villon
(tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)