segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano.
" Quem sou eu no mundo"?
Essa indagação perplexa é o lugar-comum da cada história de gente.
Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão emaranhada
em ti mesma como os seus ossos, mais forte ficarás.
Não importa qual seja a resposta;
o importante é dar ou inventar uma resposta."
PAULO MENDES CAMPOS
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
Mia Couto
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
Sonhei com uma concordância mais íntima, ou com uma
boa vontade mais flexível. A vida era para mim como o
cavalo a cujos movimentos só nos unimos depois de
havê-lo adestrado com perfeição.
Aprendi a transformar as coisas pelas quais tinha
aversão, em objeto de estudo, forçando-me a retirar
dali algum motivo de alegria.
Me forcei a festejar o acaso e a aproveitar o que ele
trazia de inesperado. E foi desta maneira, com uma
mistura de prudência e audácia, de submissão e revolta
cuidadosamente calculadas, que acabei finalmente por
aceitar-me a mim mesmo.
MARGUERITE YOURCENAR - Memórias de Adriano
Recordação de uma noite de verão
Do alto do céu um anjo enraivecido
tocou o alarme para a terra triste.
Endoidaram cem jovens pelo menos,
caíram pelo menos cem estrelas,
pelo menos cem virgens se perderam:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Nossa velha colméia pegou fogo,
nosso potro melhor quebrou a pata,
os mortos, no meu sonho, estavam vivos
e Burkus, nosso cão fiel, sumiu,
nossa criada Mári, que era muda,
esganiçou de pronto uma canção:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Os ninguéns exultavam de ousadia,
os justos encolhiam-se e o ladrão,
mesmo o mais tímido, roubou então:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Sabíamos da imperfeição dos homens,
de suas grandes dívidas de amor:
mas era singular, ainda assim,
o fim de um mundo que chegava ao fim.
Jamais tão zombeteira esteve a lua
e nunca foi menor o ser humano
do que foi nessa tal noite em questão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Perversamente em júbilo, a agonia
sobre todas as almas se abatia,
os homens imbuíram-se do fado
recôndito de cada antepassado
e, rumo a bodas de um horror sangrento,
seguia embriagado o pensamento,
o altivo servidor do ser humano,
este, por sua vez, mero aleijão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Pensava então, pensava eu, todavia,
que um deus negligenciado voltaria
à vida para me levar à morte,
mas eis que vivo e ainda sou o mesmo
no qual me converteu aquela noite
e, à espera desse deus, recordo agora
uma só noite mais que aterradora
que fez um mundo inteiro soçobrar:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
ENDRE ADY - POETA HÚNGARO
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
Escrever é alguma coisa extremamente forte
mas que pode me trair e me abandonar:
posso um dia sentir que já escrevi
o que é meu lote neste mundo e que eu
devo aprender também a parar.
Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba.
É como se o mundo estivesse a minha espera.
E eu vou ao encontro do que me espera.
ALICE RUIZ
A vida é pra mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.
Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar
Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado
Horrendo
Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.
Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!
Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.
Mário de Andrade
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
para ficar junto deles, falsa a minha curvatura, falso despojamento.
Me alinhei ao lado dos fortes e vi que não era suficientemente
forte para sustentar por mais tempo aquela arrogância, representava
planar sobre os outros porque acreditava que assim não seria
esmagada pelo rolo compressor. Teria que subir acima deste rolo,pisar nele
- Ah, meu Deus, mas era isso que eu queria?
Não também não era isso. Quis ficar só para ser verdadeira, agora queria
apenas ficar só e então sonhei que era uma rainha num coche desgovernado,
em vão chamei alguém que eu sabia por perto, onde? E o coche rodando
para trás, para os lados, sem cavalos e sem cocheiro.
Consegui descer e encontrei uma gata cor-de-mel com seu gatinho,
me aproximei enternecida, E o pai?perguntei e apareceu um leão de
juba desgrenhada e olhar de pedra.
Corri, tinha uma mulher na casa mas a mulher gesticulava e não podia
fazer nada enquanto o leão ia fechando o cerco, acordei com as pisadas
na minha retaguarda. Mas quem me detesta tanto assim para me atacar
até no sonho?
Quis saber e nesse instante vi minha imagem refletida no espelho...."
Haverá pouca coisa a esquecer:
O vôo dos corvos,
Uma rua molhada,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o pôr do Sol,
Três palavras que o mundo sabe,
Pouca coisa a esquecer.
Será bem fácil de esquecer.
A chuva pinga
Na argila rasa
E lava lábios,
Olhos e cérebro.
A chuva pinga na argila rasa.
A chuva mansa lavará tudo:
O vôo dos corvos,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o pôr do Sol.
Lavará tudo, até chegar
Aos duros ossos desnudados,
E os ossos, os ossos esquecem.
Archibald MacLeish
(tradução: Manoel Bandeira)
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
pelo grau de mistificação que se põe nela. Tal modelo seria a
ruína da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside
na impossibilidade de dar livre curso ao infinito de nossos
pensamentos ocultos. É porque somos todos impostores que nos
suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a
terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao
falso. Não há herói moral que não seja ou pueril, ou ineficaz, ou
inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na
fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta.
Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões
sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados
para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de
olhar cara a cara as dúvidas que concebemos timidamente sobre
nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem envergonhar-se.
A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita até o
cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres,
precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos
a um nada mais agradável: nossa constituição só tolera uma certa
dose de verdade…
EMIL CIORAN - Breviário da Decomposição
A Morte Absoluta
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne, a exangue máscara de cera,
Cercada de flores, que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascida menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda
- Sem deixar sequer esse nome.
MANUEL BANDEIRA
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
na mesma calçada, precipitam-se uma para a outra e se evitam
no último instante.
O mesmo acontece no gaguejar, quando as palavras se entrechocam
no momento de sair, talvez porque, contra a vontade daquele que fala,
elas se lancem umas contra as outras, ou porque aquele que fala
se assusta diante das palavras que saem dele como coisas.
JEAN BAUDRILLARD
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisa
Que tem que ver com haver gente que pensa ...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me coisas. . .
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente. . .
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas coisas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos ...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
ALBERTO CAEIRO
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
“O ditado de que a verdade triunfa sempre sobre a perseguição
é uma daquelas falsidades agradáveis que as pessoas repetem entre si
até chegarem ao estatuto de lugares-comuns, mas que toda a
experiência refuta. A história está repleta de exemplos de verdades
esmagadas pela perseguição. Mesmo que não sejam suprimidas
para sempre, poderão ser relegadas para o esquecimento durante séculos.
(…) A perseguição foi sempre bem sucedida, excepto quando os heréticos
constituíam uma facção demasiado forte para ser eficazmente perseguida.
(…) É apenas vã sentimentalidade pensar que a verdade, enquanto verdade,
tem um poder inerente – que o erro não tem – de prevalecer contra
a masmorra e a fogueira. As pessoas não se dedicam mais à verdade que
– como frequentemente acontece – ao erro, e uma aplicação suficiente
de punições legais e até sociais geralmente conseguirá travar a propagação
tanto de uma como de outro. A verdadeira vantagem da verdade é a seguinte:
quando uma opinião é verdadeira, pode ser extinta uma, duas ou até mais
vezes, mas no decorrer do tempo haverá geralmente pessoas que a
redescubram, até algum dos seus ressurgimentos calhar numa altura em que,
devido a circunstâncias favoráveis, escape à perseguição até ter adquirido
ímpeto suficiente para aguentar todas as tentativas subsequentes de a suprimir.”
Obscuro em face do Sonho
Senão uma grande angústia
Obscura em face da Angústia.
Quem sou eu senão a imponderável
Árvore dentro da noite imóvel,
E cujas presas remontam ao
Mais triste fundo da terra?
A quem respondo senão a ecos,
A soluços, a lamentos de vozes
Que morrem no fundo do meu
Prazer ou do meu tédio.
A quem falo senão a multidões
De símbolos errantes, cuja
Tragédia efêmera
Nenhum espírito imagina?
Vinícius de Moraes
domingo, 9 de janeiro de 2011
Para mim não é só um tempo, é a capacidade que temos
de nos espantar e de sermos encantados, e, nesse aspecto,
ainda vivo em estado de infância. Tudo me fascina. […]
Mas quero manter isso, apesar de saber que não é muito prático.
A única maneira que tenho de ser feliz é ter esta sensação
de estranhamento.
Como se estivesse a olhar pela primeira vez as coisas.
Essa é a minha receita para ser feliz.
Mia Couto
se estou por vezes longe do teu peito,
diz com beleza e anos, e onde estás
a tentação te segue nesse efeito.
És gentil e te assalta quem puder,
e belo és e ganham-te em disputa;
se a mulher quer, que filho de mulher
cruel a deixa, sem vencer a luta?
Ah, mas bem podias respeitar-me a casa
e censurar-te a juventude errante,
tumulto que te leva onde se arrasa
dupla fidelidade num instante:
dela, porque a beleza em ti a atrai,
tua, porque a beleza em ti me trai.
WILLIAM SHAKESPEARE
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres
todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e
o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos.
Serão tantas que desistirás de contar.
Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano
tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam.
Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e
que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho...
Caio Fernando Abreu
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
o corpo hoje se diverte ficando doente.
As novas doenças (psicossomáticas, autoimunes) são a distração
original de um corpo desanimado, que não sabe mais o que fazer
de si mesmo senão brincar com seus anticorpos.
Exatamente como as novas tecnologias, que são a distração
inédita de um cérebro desaparelhado, que não sabe mais o
que fazer de si mesmo, senão brincar com seu duplo, artificial.
JEAN BAUDRILLARD
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
para tentar a sorte e passa a ter vida própria.
O culto cego a determinada produção de nossa economia mata
os nossos semelhantes em estradas.
Os gregos, por medo de ver suas estátuas se moverem,
por vezes, recobriam-nas com correntes.
Quem pode adivinhar se, e de que modo, um determinado objeto,
apesar de convencional e produzido por nossa indústria,
pode um dia converter-se em símbolo, em ícone,
ou que mais posso dizer, em divindade?
MICHEL SERRES
Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.
Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.
JULIO CORTAZAR
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
O sábio, que renunciou ao sentido e ao eu, ama o real,
aceita-o e contenta-se com ele. Libertado de si, curado
do medo e da esperança, despreocupado com os signos
e o sentido, só habita o tempo na paz aqui, agora e
sempre, da presença. Não aguarda nada, mas é atento.
Não busca nada, mas é disponível. Não espera nada,
mas ama. Todos os sábios disseram, em todas as línguas:
"Infinite love, infinite patience". Sabedoria, não de
recolhimento, mas de acolhida. O sábio tem o tempo
(já que não aguarda nada) e todo o tempo
(já que não há outro). Paciência, não da espera, mas da
vida, não para o futuro, mas para o presente.
Os ocupados se precipitam para o que lhes falta, ou
aguardam (pacientemente, dizem eles!) que lhes caia
dos céus. O sábio faz, tranqüilamente, o que tem a fazer.
Não aguarda nada, e é por isso que não tem impaciência.
Nada lhe falta, e é por isso que não se precipita.
Lentidão do tempo, lentidão da presença...
Todos os dias são hoje, é "o oitavo dia da semana, que
não começa e não se esgota em nenhum tempo",
e essa presença é exatamente aquilo a que o sábio está
presente. Ele ainda vive no tempo? Claro, mas na verdade
do tempo. Presente ao presente da presença, ele é aqui
e agora, contemporâneo do eterno.
André Comté-Sponville
Não chamo um o maior e outro o menor,
Quem quer que preencha o seu período de tempo
e lugar é igual a qualquer outro.
Meus signos são uma capa à prova de chuva, bons
calçados e um bordão colhido nos bosques.
Nenhum dos meus amigos busca descanso em
minha cadeira.
Não possuo cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo homem algum à mesa do jantar,
biblioteca ou casa de câmbio,
Mas conduzo cada um de vós, homem ou mulher,
para o alto de um outeiro
Minha mão esquerda prende-vos pela cintura,
Minha mão direita aponta em direção de
continentes e estrada aberta.
WALT WHITMAN