segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
que ele não ame com coragem.
Pode ter os maiores defeitos, atrasar-se para os compromissos ...
Qualquer coisa é admitida, menos que não ame com coragem.
Amar com coragem não é viver com coragem.
É bem mais do que estar aí.
Amar com coragem não é questão de estilo, de opinião.
Amar com coragem é caráter.
Vem de uma incompetência de ser diferente.
Amar para valer, para dar torcicolo.
Não encontrar uma desculpa ou um pretexto para se adaptar.
Não usar atenuantes como “estou confuso”.
Amar com fúria, com o recalque de não ter sido assim antes.
Amar decidido, obcecado,
como quem troca de identidade e parte a um longo exílio.
Amar como quem volta de um longo exílio.
Amar quase que por, por bebedeira,
Amar desavisado . Amar desatinado, pressionando,
a amar mais do que é possível lembrar.
Amar com coragem, só isso.
FABRÍCIO CARPINEJAR
Não tenta nada de que se tivesse já esquecido;
o seu objectivo, agora, é organizar o presente.
Com as mãos, procura avaliar a qualidade da terra:
se as folhas lhe dão a consistência do ser vivo,
ou se a pedra que está por baixo, com os restos
fósseis da origem, rompe a sua unidade, e impede
o caminho às raízes.
Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda
os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite;
e é da fusão das formas no negro último do céu,
para além da superfície das estrelas e das nebulosas
que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade.
NUNO JÚDICE
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que
abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores
interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços,
pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e
nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e
apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas.
Como sangue, existimos dentro dos gestos.
As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos.
E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos.
O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado.
Debaixo da pele, envolvemos as memórias,
as ideias, a esperança e o desencanto.
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Alberto Caeiro
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
a madeira não é isotrópica. Nem eu; tenho meus "pontos fracos". Só eu conheço
o mapa desses pontos, e é por ele que me guio, evitando, procurando isso ou
aquilo, segundo condutas exteriormente enigmáticas; eu gostaria que esse mapa
de acupuntura moral fosse distribuído aos meus novos conhecidos. Para localizar
meus pontos fracos, existe um instrumento que se assemelha a um prego:
é a brincadeira - eu a suporto mal. Não só a brincadeira corre incessantemente
o risco de tocar um dos meus pontos fracos, mas também tudo com o que o mundo
se diverte me parece sinistro."
ROLAND BARTHES
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se
alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas ne desordem,
nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco
luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como
um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que
crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
HERBERTO HELDER
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso,
não tinha um deus, idéias, ideais, nem me preocupava com política.
Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não-ser.
E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante.
Não queria ser uma pessoa interessante, dava muito trabalho.
Eu queria mesmo um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão.
Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo
e não conseguia nada.
Um tipo de comportamento não se casava com o outro.
Pouco me importava."
CHARLES BUKOWSKI
O que é nossa inocência,
nossa culpa? Frágeis, somos,
vulneráveis. E de onde vem a
coragem: a pergunta sem resposta,
a resoluta dúvida –
muda chamando, surda ouvindo – que
no infortúnio, na morte mesmo,
encoraja outras ainda
e em sua derrota anima
a alma a ser forte? Compraz-se
e com perspicácia vê
quem a mortalidade abrace
e no confinamento contra si
mesmo se volte, assim
como o mar que no abismo intenta ser
livre mas, incapaz de ser,
no ato de capitular
encontra seu perdurar.
Quem no sentimento espera
assim age. O próprio pássaro,
que ao cantar se engrandece, acera
o corpo aprumado. Embora cativo,
seu poderoso trino
diz: o contentamento é humilde;
quão puro é o regozijo.
Isto é mortalidade,
isto é eternidade.
MARIANNE MOORE
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
do que imagina; por mais fraco que se considere,
cada um de nós tem mais poder do que pode supor.
Nem o tirano nem o escravo são capazes de avaliar sua
capacidade.
Amanhã, o primeiro cairá por si mesmo, e o segundo
desprezará a opórtunidade de tomar o poder para
tentar instaurar um mundo menos absurdo.
MICHEL SERRES
A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
Bendita a morte,
que é o fim de todos os milagres!
Manuel Bandeira
domingo, 13 de fevereiro de 2011
quando ela passa diante dos seus olhos, você mal
a percebe e imediatamente volta a esquecê-la.
Mas assim que ela de algum modo, invisivelmente,
chega aos seus ouvidos, começa a se expandir, eclode,
e conhecem-se casos em que ela penetrou no
cérebro e floresceu ali devastadoramente,
como os pneumococos em cães,
que penetram através do focinho...
Essa ciratura é o Seu Próximo."
RAINER MARIA RILKE
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
MIA COUTO
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Só nos parecemos de longe, na proporção em que não somos nós.
A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que
nunca definem, e são, um e outro, ninguém.
Cada um de nós é dois - o homem que sonha em cada homem
que age. Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre
o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz,
porque só quem não busca, encontra, visto que quem não
procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz.
FERNANDO PESSOA
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
MIA COUTO
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
enfeitam uma criatura, até o último momento, com penas de
pavão, e não querem ver, nela, senão o que é bom, muito
embora sentindo tudo ao contrário.
Jamais querem, antecipadamente, dar às coisas o seu devido nome.
Essa simples idéia lhes parece insuportável.
A verdade, repelem-na com todas as forças até o momento
em que aquela pessoa, engalamada por elas próprias,
lhes mete um murro na cara.”
quando você esta a fim,
um bom poema é como um misto
quente quando você está
faminto,
um bom poema é uma arma quando
a multidão te cerca,
um bom poema é algo que
te permite atravessar as ruas da
morte,
um bom poema pode fazer a morte derreter como
manteiga quente,
um bom poema pode emoldurar a agonia e
pendurá-la na parede,
um bom poema permite teus pés tocarem
a China,
um bom poema pode fazer uma mente despedaçada
voar,
um bom poema te permite cumprimentar
Mozart,
um bom poema te permite jogar dados
com o diabo
e ganhar,
um bom poema pode fazer quase qualquer coisa,
e o mais importante,
um bom poema sabe quando
terminar.
CHARLES BUKOWSKI