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quarta-feira, 30 de março de 2011
O mundo não fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra;
sou eu que digo o que as coisas são.
Esse é um poder inigualável - eu posso falsificar tudo e todos, sempre,
um Midas Narciso, fazendo de tudo minha imagem, desejo e semelhança.
Que é mais ou menos o que todos fazem, o tempo todo: falsificar.
Essa algaravia monumental em toda parte, todos falando tudo a todo instante,
esse horror coletivo ao silêncio.
Nada tem essência alguma em lugar algum. Isso, sim, faz sentido."
CRISTÓVÃO TEZZA
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
segunda-feira, 28 de março de 2011
- É que estou sem defesa - respondi - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor - Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? - disse eu - Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente - disse o senhor - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. - respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem - disse o senhor - Vou o mais depressa possivel.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.
FRANZ KAFKA
COMO PINTAR UM PÁSSARO
Pinte primeiro uma gaiola
com a porta aberta.
Em seguida pinte
alguma coisa graciosa,
alguma coisa simples,alguma coisa bonita,
alguma coisa útil...
ao pássaro.
Depois, coloque a tela contra uma árvore
no jardim,
no bosque
ou na floresta
e esconda-se
atrás da árvores
em dizer nada, sem se mexer.
Às vezes o pássaro chega logo,
mas pode levar muitos, muitos anos
até se resolver.
Não desanime,
espere.
Espere, se preciso, durante anos.
A velocidade ou a lentidão da chegada
do pássaro, não tem a menor relação
com a qualidade da pintura.
Quando ele chegar
(se chegar)
mantenha o mais profundo silêncio,
espere que ele entre na gaiola.
Depois que entrar,
feche lentamente a porta com o pincel.
Aí então
apague uma por uma todas as varetas.
(Cuidado para não esbarrar em nenhuma pena
do pássaro.)
Finalmente pinte a árvore,
reservando o mais belo de seus ramos
ao pássaro.
Pinte também a verde folhagem e a doçura do
vento,
a poeira do sol,
o rumorejo dos bichinhos da relva no calor da
estação.
Depois aguarde que o pássaro se decida a
cantar.
Se ele não cantar,
mau sinal:
sinal de que o quadro não presta.
Mas bom sinal, se ele canta:
sinal de que você pode assinar o quadro.
Então retire suavemente
uma pena do pássaro
e escreva o seu nome a um canto do quadro."
JACQUES PRÉVERT
domingo, 27 de março de 2011
Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos – da – ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó –
dos – andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.
e do incêndio quero o fogo e não a rima, da sombra o escuro
e não a posição gramatical, se do amor não quero nada, por querer
dizer coisas demais, então devo me chamar, como o naufrágo: Ninguém,
sem querer de ninguém o seu sentido, mas aquilo que vem antes,
ainda sem ter estado lá; se da terra quero o que brota e afunda,
mas antes que houvesse tempo, e habilidade, para chamar aos frutos,
frutos e aos mortos, mortos, então seria melhor apagá-las todas,
às palavras, uma a uma, às negras, pequenas aranhas,
livrando o dicionário dessa mácula, e beber o que foi tinta
até a boca ficar preta, e transformar a tinta em chuva, em tigre.
NUNO RAMOS
quinta-feira, 24 de março de 2011
com as outras criaturas.
Certo, e exatamente essa semelhança só ele pode ver.
Mesmo no sentido de que o homem está em harmonia
com o universo, trata-se de uma universalidade
absolutamente solitária.
O próprio sentido de que está unido a todas as coisas é
suficiente para separá-lo de todas.
Olhando a seu redor sob essa luz única, tão solitário
como a chama que literalmente só ele acendeu, esse
semideus ou demônio do mundo visível
torna esse mundo visível."
G.K.Chesterton
APRENDIZADO
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
FERREIRA GULLAR
terça-feira, 22 de março de 2011
Na ciência é o contrário: é preciso explicar o caminho que
se tomou para chegar à idéia. É esse caminho que tem o
nome de método. Seguindo o mesmo caminho, qualquer
outro cientista poderá chegar à mesma idéia. Na literatura
é o contrário: o escritor não sabe de onde as idéias vêm.
Portanto não se pode ensinar o caminho. A ciência é a
caça de um pássaro definido de antemão que, depois de
apanhado, será preso numa gaiola de palavras. Mas a
inspiração não é uma caça; ela chega em momentos
de distração, ou seja, ela não tem método: o pássaro
pousa no nosso ombro, sem que o tivéssemos
procurado. Picasso explicou o seu método: " eu não
procuro. Eu encontro."
RUBEM ALVES
Não chamo um o maior e outro o menor,
Quem quer que preencha o seu período de tempo
e lugar é igual a qualquer outro.
Meus signos são uma capa à prova de chuva, bons
calçados e um bordão colhido nos bosques.
Nenhum dos meus amigos busca descanso em
minha cadeira.
Não possuo cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo homem algum à mesa do jantar,
biblioteca ou casa de câmbio,
Mas conduzo cada um de vós, homem ou mulher,
para o alto de um outeiro
Minha mão esquerda prende-vos pela cintura,
Minha mão direita aponta em direção de
continentes e estrada aberta.
WALT WHITMAN
segunda-feira, 21 de março de 2011
Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo.
John KeatsHá algo lento e reconfortante e gradual envolvendo essa palavra e mesmo essa ideia.
Ninguém consegue imaginar como o "nada" poderia transformar-se em alguma coisa.
Evolução é erroneamente tomada como uma explicação.
Mas essa noção de algo suave e lento, como a subida de uma encosta, constitui
grande parte da ilusão. Um acontecimento não é nem um pouco intrinsecamente
mais inteligível ou não devido ao ritmo em que se desenrola.
Para uma pessoa que não acredita em milagres, um milagre lento seria
exatamente tão inacreditável quanto um rápido."
G.K.Chesterton
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice
quinta-feira, 17 de março de 2011
FAGUNDES VARELA
punham seus estados em ordem. Antes de porem os seus estados em ordem
punham em ordem as suas famílias. Antes de porem em ordem as sua famílias,
punham em ordem a si próprios, aperfeiçoavam suas almas.
Antes de aperfeiçoarem as suas almas, procuravam ser sinceros em seus
pensamentos e ampliavam ao máximo os seus conhecimentos. Essa ampliação
de conhecimentos decorre da investigação das coisas, ou de vê-las como elas são.
Quando as coisas são assim investigadas, o conhecimento torna-se completo.
Quando os pensamentos são sinceros, a alma torna-se perfeita.
Quando a alma se torna perfeita, o homem está em ordem.
Quando o homem está em ordem, a sua família também fica em ordem.
Quando a família está em ordem, o estado que ele dirige também pode
alcançar a ordem. E quando os estados alcançam a ordem o mundo inteiro
goza de paz e felicidade.
CONFÚCIO
domingo, 13 de março de 2011
que despreza e elimina o que é acessório, o que é múltiplo e
o que é essencial; em um mundo que cada vez mais proíbe
a transformação porque esta se contrapõe ao propósito único
da produção, que multiplica sem escrúpulos os meios para a
sua autodestruição, simultaneamente tentando sufocar aquilo
que ainda existe em termos de qualidades humanas anteriormente
adquiridas, neste mundo que podemos designar como o mais
cego de todos os mundos, parece ser de suma importância que
existam pessoas que, apesar dele, continuem exercitando
este dom da transformação."
ELIAS CANETTI
Os sonhos mais frescos e instigantes;
estou onde estão as torrentes.
Ao redor da casa grande espaça um quintal sem cercas
tomado de bananeiras, só bananeiras,
altas como coqueiros.
Chego e é na beira do mar encrespado de correntezas,
sorvedouros azuis.
Há um perigo sobre faixa exígua
que é de areia e é branca
Quero braceletes
e a companhia do macho que escolhi.
ADÉLIA PRADO
quinta-feira, 10 de março de 2011
os limites da simplicidade da natureza, porque
tudo o que a ela se opõe, afasta-se igualmente da
própria finalidade da arte dramática,
que é a de apresentar um espelho à vida;
mostrar à virtude suas prórpias feições, ao vício sua
verdadeira imagem e a cada idade
e geração sua fisionomia e características.
SHAKESPEARE
quinta-feira, 3 de março de 2011
Em que sociedades, em que tempos se chorou?
Desde quando os homens ( e não as mulheres) não choram mais?
Por que a "sensibilidade" se transformou em dado momento em "pieguice"?
Qual é esse "eu" que tem "lágrimas" nos olhos?
Se tenho tantas maneiras de chorar, é porque, talvez, quando choro, me
dirijo sempre a alguém, e o destinatário das minhas lágrimas não é sempre
o mesmo: adapto minhas maneiras de chorar ao tipo de chantagem que
pretendo exercer ao meu redor através das lágrimas.
Me faço chorar para me provar que minha dor não é uma ilusão:
as lágrimas são signos e não expressões.
Através das minhas lágrimas, conto uma história, produzo um mito da
dor, e a partir de então me acomodo: posso viver com ela, porque,
ao chorar, me ofereço um interlocutor empático que recolhe a mais
"verdadeira" das mensagens, e do meu corpo e não a minha língua:
Que são as palavras? Um lágrima diz muito mais.
ROLAND BARTHES
Haverá pouca coisa a esquecer:
O vôo dos corvos,
Uma rua molhada,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o pôr do Sol,
Três palavras que o mundo sabe,
Pouca coisa a esquecer.
Será bem fácil de esquecer.
A chuva pinga
Na argila rasa
E lava lábios,
Olhos e cérebro.
A chuva pinga na argila rasa.
A chuva mansa lavará tudo:
O vôo dos corvos,
O modo do vento soprar,
O nascer da lua, o pôr do Sol.
Lavará tudo, até chegar
Aos duros ossos desnudados,
E os ossos, os ossos esquecem.
Archibald McLeish
(Tradução: Manuel Bandeira)