quinta-feira, 28 de abril de 2011
o pensamento que se ajusta à rima, na segunda metade da vida,
tendo se tornado mais receosas, as pessoas buscam as ações,
...
atitudes e situações que combinem com as de sua vida anterior,
de modo que exteriormente tudo seja harmonioso: mas sua vida
já não é dominada e repetidamente orientada por um pensamento
forte; no lugar deste surge a intenção de encontrar uma rima."
NIETZSCHE
outras anda;
com este corre,
...
com aquele vai devagar;
A uns entibia,
e a outros abrasa;
A uns fere, e a outros mata;
Num mesmo ponto principia
a carreira dos seus desejos,
e ali mesmo os acaba e conclui;
Pela manhã, costuma colocar cerco
a uma fortaleza,
e à noite a leva de vencida,
porque não há força
que lhe resista.
(MIGUEL DE CERVANTES)
quarta-feira, 27 de abril de 2011
de que as coisas são aquilo que parecem ser.
Achamos que a grama é verde, que as pedras são duras e
que a neve é fria. Mas a física nos assegura que o verdejar da
grama, a dureza das pedras e a frieza da neve não são o verdejar
da grama, a dureza das pedras e a frieza da neve que conhecemos
em nossa experiência própria, e sim algo muito diferente."
BERTRAND RUSSELL
O Espectro familiar que anda comigo,
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ansioso espreito e sigo.
É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto, ascético e composto
Mil vezes abro a boca... e nada digo.
Só uma vez ousei interrogá-lo:
Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
Fantasma a quem odeio e a quem amo?
Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
Chamam-me Deus, ha mais de dez mil anos...
Mas eu por mim não sei como me chamo...
Antero de Quental
segunda-feira, 25 de abril de 2011
- Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa...flor de laranjeira...
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes''
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...
O que seríamos nós sem o socorro do que não existe?
Pouca coisa, e nossos espíritos desocupados feneceriam
se as fábulas, as abastrações, as crenças e os monstros,
as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não
povoassem de imagens e seres sem objetos nossas
profundezas e nossas trevas naturais.
Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores.
Só podemos agir movendo-nos em direção a um fantasma.
Só podemos amar o que criamos."
Paul Valéry
sábado, 23 de abril de 2011
inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma
contempla todas as coisas belas do universo.
Essa experiência é tão forte que todas as infinitas formas de
beleza do Universo ficam eternamente gavadas em nós.
Ao nascer, esquecemo-nos delas. Mas não as perdemos.
A beleza fica em nós adormecida como um feto.
Assim, todos nós estamos grávidos de beleza, beleza que quer
nascer para o mundo qual uma criança.
Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós mesmos
e experimentamos a alegria.
Acrescento ao mito a minha contribuição: há seres privilegiados
aos quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza.
Eles veem e ouvem aquilo que nós nem vemos nem ouvimos.
Aí eles transformam o que viram e ouviram em objetos belos
que os homens normais podem ver e ouvir.
É assim que nasce a Arte".
RUBEM ALVES
O DESPERTAR
Entra a luz e ascendo inertemente
Dos sonhos para o sonho repartido
E as coisas recuperam o seu devido
E aguardado lugar e no presente
Concentra se, opressivo e vasto, o vago
Ontem: as seculares migrações
Das aves e dos homens, as legiões
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Também regressa a quotidiana história:
Meu rosto, minha voz, receio e sorte.
Ah, se aquele outro despertar, a morte
Me apresentasse um tempo sem memória
Do meu nome e de tudo o fui sendo!
Se nesse dia houvesse esquecimento!
Jorge Luis Borges
quarta-feira, 20 de abril de 2011
nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras
simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes
o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) -
de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala
de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente,
outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante;
pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal,
os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo
- e alguns são demasiado absurdos e ridículos para
figurarem numa obra impressa.
Virginia Woolf, in "Orlando"
Com lento amor olhava os dispersos
Tons da tarde. A ela comprazia
Perder-se na complexa melodia
Ou na curiosa vida dos versos.
Não o rubro elemental mas os cinzentos
Fiaram seu destino delicado,
Feito a discriminar e exercitado
Na vacilação e nos matizes.
Sem se atrever a andar neste perplexo
Labirinto, olhava lá de fora
As formas, o tumulto e a carreira,
Como aquela outra dama do espelho.
Deuses que habitam para lá do rogo
Abandonaram-na a esse tigre, o Fogo.
Jorge Luis Borges
terça-feira, 19 de abril de 2011
O que me parece misterioso é saber em que creem os que creem e,
sinceramente, por mais que os tenha escutado, eu nunca entendi
a que eles se referem. Nós, porém, os não crentes, acreditamos em
algo: no valor da vida, da liberdade e da dignidade, e em que o
gozo dos homens está em suas próprias mãos e de ninguém mais.
São os que devem enfrentar com lucidez e determinação sua
condição de solidão trágica, pois é essa instabilidade que dá
acesso à criação e à liberdade."
FERNANDO SAVATER
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
ALBERTO CAEIRO
segunda-feira, 18 de abril de 2011
O reino do iniminável não era desprovido de forma.
Eu tinha de encontrar meu caminho dentro dele - como
se estivesse num cômodo, escuro feito breu, com mobília
sólida e objetos pontudos.
E, de qualquer maneira, a maior parte do que eu sabia,
a maioria de minhas intuições, eram inomináveis ou seus
nomes eram tão longos quanto livros inteiros
que eu ainda não havia lido."
JOHN BERGER
Poema
De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido.
Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas?
Alguém esquecido
no fundo dos tempos?
Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto?
Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?
Nem eu, nem ninguém.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
isto é, um composto de perceptos e afectos. Os perceptos não são mais
percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam;
os afetos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força
daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e
afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido.
Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como
ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio
um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação,
e nada mais: ela existe em si.
Gilles Deleuze e Félix Guattari - O que é a filosofia?
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
MANOEL DE BARROS
terça-feira, 12 de abril de 2011
TENTAÇÕES DO APOCALIPSE
Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.
JORGE DE SENA
sociedade da "desordem", uma vez que não existe potência
capaz de fundar a ordem através apenas do interdito dos
corpos sobre os corpos. Forças fictícias são necessárias...
A ordem exige, por isso, a ação de presença de coisas ausentes.
É, portanto, sobre "coisas vagas" que repousa toda civilização:
" o mundo transcendental, não existindo, suporta,
entretanto, pirâmides e catedrais."
PAUL VALÉRY
segunda-feira, 11 de abril de 2011
estúpidos, sem excluir mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar
conjuntamente diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam
entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal,
por mais perfeito e bem concebido que possa ser, que faça o mesmo.
E isso não se dá porque lhes faltem, órgãos, pois os papagaios podem proferir
palavras assim como nós, e, todavia, não podem falar como nós, isto é,
testemunhando que pensam o que dizem. Por outro lado, os homens que, tendo
nascido surdos e mudos, são desprovidos de órgãos que servem aos demais
para falar, tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns
símbolos pelos quais se fazem entender a sua língua. E isso não demonstra
apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não a
possuem absolutamente. Vemos que é preciso muito pouco para saber falar;
e já que se nota a desiguladade entre os animais de uma mesma espécie,
assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de serem adestrados
do que outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, por mais perfeitos
que fossem, em sua espécie, não igualassem uma criança das mais estúpidas
ou pelo menos que tivesse cérebro perturbado, se a sua alma não fosse
de uma natureza inteiramente diferente da nossa."
Discurso do Método - Descartes
Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas que se ignoram, estão salvando o mundo.
JORGE LUÍS BORGES
quinta-feira, 7 de abril de 2011
"Pejo não tendes, ó frígios! de mais uma vez vos cercardes
de um valo fundo e de opordes à Morte barreira tão frágil?
Com armas tais pretendeis disputar nossas belas esposas?
Que divindade ou delírio vos trouxe às paragens da Itália?
Não achareis entre nós nem Atridas nem falsos Ulisses.
Somos de estirpe robusta..."
(p.194)
ENEIDA - VIRGÍLIO
quarta-feira, 6 de abril de 2011
de metonímias, de antropomorfismos; em resumo, uma
soma de relações humanas que foram poética e retoricamente
intensificadas, transportadas e adornadas e que, depois de
um longo uso, parecem a um povo fixas, canônicas e
vinculativas: as verdades são ilusões que foram esquecidas
enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram
esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu
cunho e que agora são consideradas não mais como
moedas, mas como metal.
Friedrich Nietzsche
terça-feira, 5 de abril de 2011
caminhos que percorri e que ramificam como os galhos de
uma árvore.
Na obsessão de minha primeira juventude, imaginava a vida
diante de mim como uma árvore.
Chamava-a então de árvore das possibilidades.
É só por um período curto que se vê a vida assim.
Depois, ela aparece como uma estrada imposta de uma vez por todas,
como um túnel do qual não se pode sair.
No entanto, a antiga imagem da árvore permanece em nós
sob a forma de uma indelével nostalgia."
MILAN KUNDERA
nem da eternidade,
que as nuvens
me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam
contra o meu desejo!
Apressa-te, amor,
que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe,
em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo...
CECÍLIA MEIRELLES
domingo, 3 de abril de 2011
" Não existe gente grande. Existem apenas crianças que fazem
de conta que cresceram, ou que de fato cresceram sem no
entanto acreditarem plenamente nisso, sem conseguir apagar
a criança que foram, que continuam sendo, apesar de tantas
mudanças, que carregam consigo como um segredo, como um
mistério, ou que as carrega...
Ser adulto é ser um coadjuvante".
ANDRÉ COMTE-SPONVILLE
o poeta é mercador
traficante de caminhos
que vende raios,
sinfonias
e horizontes. frugal mercador de eternidades
– porta a porto –
aos quatro cantos do luar
ao mar
ao ar
sob o tempo
e o temporal.
o poeta corre o risco
entre o amor livre
e a palavra.
está sempre atrás do pano
em plena corda bamba
do mistério.
e atravessa submerso as metrópoles
dos olhares
feito um louco solitário
que come fogo.
SALGADO MARANHÃO