quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
que as coisas têm sentido; tem que levar as pessoas a acreditarem
que sabemos o que estamos fazendo. Apenas jogamos o jogo,
não temos escolha. Nascemos num determinado meio, estamos
condicionados a ele. Podemos escapar um pouco aqui e ali, como
faríamos numa canoa furada, mas não há saída completa, não há
tempo para ela, a gente precisa alcançar o porto, ou imagina que precisa.
Nunca o alcançaremos, é claro... A canoa afundará antes disso."
HENRY MILLER
Magoei os pés no chão onde nasci.
Cilícios de raivosa hostilidade
Abriram golpes na fragilidade
De criatura
Que não pude deixar de ser um dia.
Com lágrimas de pasmo e de amargura
Paguei à terra o pão que lhe pedia.
Comprei a consciência de que sou
Homem de trocas com a natureza.
Fera sentada à mesa
Depois de ter escoado o coração
Na incerteza
De comer o suor que semeou,
Varejou,
E, dobrada de lírica tristeza,
Carregou.
MIGUEL TORGA
domingo, 26 de fevereiro de 2012
de insetos, sociedades do alarido, da agitação frenética, do
barulho caótico das gentes, onde, o eu morre de nós.
Não, é preciso a oportuna desconexão; o futuro pertence
às ordens contemplativas. E o que nos salvará serão as
novas formas de recolhimento que associem solitários e
solidários.
É no isolamento, no silêncio, que o homem pode encontrar
a "verdade", ou o insight fértil: saído como um desvio da
regularidade."
MICHEL SERRES
Ninguém animará pela palavra o nosso pó
Ninguém
Louvado sejas, Ninguém
Por amor de ti queremos
florir
Em direção
a ti
Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém
Com
o estilete claro da alma,
o estame ermo do céu,
a corola vermelha
da purpurea palavra que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho
PAUL CELAN
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
não o que pensam os outros.
Esta regra, igualmente árdua na vida imediata como
na intelectual, pode servir para a distinção total entre
a grandeza e a baixeza.
E é tanto mais dura quanto sempre se encontrarão pessoas
que acreditam saber melhor do que tu qual é o teu dever.
É fácil viver no mundo de conformidade com a opinião das gentes;
é fácil viver de acordo consigo próprio na solidão;
mas o grande homem é aquele que, no meio da turba,
mantém, com perfeita serenidade, a independência da solidão.
Ralph Waldo Emerson
LADRÃO DE INUTILIDADES
Há
em meu peito
um forasteiro
vindo do último
vento do oriente
estrangeiro sem face
sem pés e pernas
a percorrer a pátria
da inexistência.
Há
em minhas veias
um ladrão de inutilidades
ancião de areia
a roubar do vento
sorrisos de chuva
alegrias de nuvem
lágrimas de estrela.
Há
em minhas palavras
um menino triste
tão triste quanto a esperança
tão velho quanto a alegria
um menino invisível
feito de poeiras e folhas
morte de todos os instantes.
Alexandre Bonafim
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
Ouve-se sempre esta mesma observação: que a filosofia não faz,
propriamente, nenhum progresso, que os mesmos problemas filosóficos
que já ocupavam os gregos ainda nos ocupam.
Mas os que dizem isto não compreendem a razão pela qual
deve ser assim. Ora, essa razão é que nossa língua permaneceu
idêntica a si mesma e que ela nos desvia sempre para as mesmas
questões. Enquanto houver um verbo "ser" que parecerá funcionar
como funcionam "comer" e "beber", enquanto houver os adjetivos
"idêntico", "verdadeiro", "falso", "possível", (...) os homens sempre
virão tropeçar de novo nas mesmas dificuldades enigmáticas e
contemplar com um ar fixo aquilo que nenhuma
explicação parece capaz de esgotar.
WITTGENSTEIN
Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam
OCTAVIO PAZ
terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
interesse privado mais mesquinho, mas ao mesmo tempo,
no seu comportamento, são mais do que nunca determinadas
pelo instinto das massas. E mais do que nunca, o instinto das massas
tornou-se errado.
O obscuro instinto do animal - como inúmeros episódios o comprovam -
encontra a saída para o perigo iminente mas ainda invisível.
Em contrapartida, esta sociedade, onde cada um tem apenas em vista
o seu próprio interesse mesquinho, sucumbe como uma massa cega,
com estupidez animal mas sem a estúpida sabedoria dos animais,
a todo o perigo, ainda que muito próximo,
e a diversidade dos objetivos torna-se insignificante,
ante a identidade das forças determinantes.
Muitas vezes se tem demonstrado que é tão rígida a sua
fixação à vida habitual, mas de há muito perdida, que acaba por
não se verificar a aplicação efectivamente humana do intelecto,
a previdência, até mesmo ante o perigo iminente.
Assim a imagem da estupidez completa-se nela:
insegurança, ou mesmo perversão dos instintos vitais,
e desfalecimento ou até decadência do intelecto.
Walter Benjamin
Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
“o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo”.
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo é tão negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
e eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.
ADÉLIA PRADO
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Virginia Woolf
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as ra parigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Helder
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
que o outro ama; e que um não tenha medo do que o
outro tem; e que um só e mesmo homem ame agora o
que antes receava. Além disso, cada um julga segundo
a sua afecção, o que é bom, o que é mau, o que é
melhor e o que é pior, daí se segue que os homens
podem diferir tanto pelo juízo xomo, pelas afecções;
daí advém que comparando uns com os outros, não
os distinguimos senão pela diversidade de suas afecções.
ESPINOSA
sábado, 11 de fevereiro de 2012
De mutações e variação de temas?
Por que não olho as coisas do presente
Atrás de outras receitas e sistemas?
Por que só escrevo essa monotonia
Tão incapaz de produzir inventos
Que cada verso quase denuncia
Meu nome e seu lugar de nascimento?
Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito
E sobre o amor, são meus únicos temas.
E assim vou refazendo o que foi feito,
Reinventando as palavras do poema.
Como o sol, novo e velho a cada dia,
O meu amor rediz o que dizia.
WILLIAM SHAKESPEARE
A vida ia tomando forma e cor, rompia...
Eu estava tão presa a ti, que não sabia
Onde acabava eu e começava tu.
Mas ela mesma, a vida, a borbulhar selvagem
No uivo dos animais, no viço da folhagem
- Em tudo, no teu corpo e no meu corpo nu -
Ela mesma nos separou. As cordilheiras
Afundaram no oceano. As vozes derradeiras
Dos bichos que no abismo iam todos morrer.
Enchiam-me de assombro... E conheci na treva
A maior dor. A dor da força que me leva
Para longe de ti. Meu ser pelo teu ser
Clamou... Clamou debalde. Em mim subitamente
Tudo descorou, tudo envelheceu. Ao quente
Meu coração de outrora, hoje tarde reflui
Um sangue pobre em que já não palpita nada.
Como a planta sem ar, murchei. Branca e gelada,
Não sou mais do que uma lembrança do que fui.
Embora! Testemunhei eu só, aquela
Que trouxe a vida em si mais luminosa e bela
Do que nunca a sonhaste, a glória deste amor
Terás em mim, aquela que foi tua, ora uma estranha,
A única face que te observa e te acompanha
Da funda escuridão... Cada dia maior...
MANUEL BANDEIRA
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
A vida não é um destino, é uma aventura.
Ninguém escolheu nascer; ninguém vive sem escolher.
Cada qual é inocente de si, mas responsável pelos seus atos.
E responsável, portanto, ao menos em parte, por aquilo que se tornou.(...)
É forjando que alguém se torna forjador. É bebendo que alguém se torna alcoólico.
É realizando acções virtuosas que alguém se torna virtuoso.
"Fazer", dizia Lequier, "e, fazendo, fazer-se".
Isso não fará de nós outra pessoa, o que ninguém consegue.
Mas impede de nos resignarmos rápido demais ao que somos,
o que ninguém deve fazer.
André Comte-Sponville - "A vida humana"
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.
És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.
És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.
MIGUEL TORGA