quinta-feira, 19 de abril de 2012
durante anos se esforçou psiquicamente por agarrar as
realidades da vida com a seriedade desejada, pode acontecer
que um dia se encontre de novo numa disposição psíquica
que volta a apagar esta oposição entre o jogo e a realidade.
O homem adulto lembra-se da grande seriedade com que
se entregava aos jogos infantis e acaba por comparar as suas
ocupações por assim dizer graves com esses jogos dos
tempos da infância: liberta-se então da opressão demasiado
pesada da vida e conquista a fruição superior do humor.
Sigmund Freud
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Um homem que ama as coisas em sua pureza natural, que
gosta de recebê-las tal como são, com claridade, recortadas
pelo meio-dia, sem que se confundam umas com outras,
sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que
quer, antes de tudo, ver e tocar as coisas e que não se
contenta imaginando-as: sou um homem sem imaginação".
Ortega y Gasset
FIZESTE BEM EM PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!
Teus dezoito anos refratários à amizade, à malevolência,
à bobeira dos poetas de Paris, assim como ao zunzum de abelha
estéril de tua família ardenesa um pouco doída,
fizeste bem espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a
lâmina de sua guilhotina precoce.
Tiveste razão em abandonar o bulevar dos preguiçosos,
os botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras,
pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma,
esta bala de canhão que explode seu alvo, sim,
é isso mesmo a vida de um homem!
Não se pode, indefinidamente, saindo da infância,
estrangular seu próximo.
Se os vulcões mudam pouco de lugar, sua lava
percorre o grande vazio do mundo levando
virtudes que cantam em suas feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!
Ainda há quem creia, sem provas,
que contigo a felicidade é possível.
RENÉ CHAR
segunda-feira, 16 de abril de 2012
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
MANUEL BANDEIRA
“La libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre; por la libertad así como por la honra se puede y debe aventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puede venir a los hombres. Digo esto, Sancho, porque bien has visto el regalo, la abundancia que en este castillo que dejamos hemos tenido; pues en mitad de aquellos banquetes sazonados y de aquellas bebidas de nieve me parecía a mí que estaba metido entre las estrechezas de la hambre, porque no lo gozaba con la libertad que lo gozara si fueran míos, que las obligaciones de las recompensas de los beneficios y mercedes recebidas son ataduras que no dejan campear al ánimo libre. ¡Venturoso aquel a quien el cielo dio un pedazo de pan sin que le quede obligación de agradecerlo a otro que al mismo cielo!”
Miguel de Cervantes - «El ingenioso caballero don Quijote de La Mancha», Capítulo LVIII
domingo, 15 de abril de 2012
Nós
os poetas caminheiros
explorámos o mundo, a cada porta
recebeu-nos a vida,
participámos na luta terrestre.
A nossa vitória qual foi?
Um livro, um livro cheio
de contactos humanos,
de camisas, um livro
sem solidão, com homens
e ferramentas, um livro
é a vitória. Vive e cai
como todos os frutos,
não só tem luz,
não só tem sombra,
apaga-se,
desfolha-se,
perde-se de rua em rua,
despenha-se na terra.
Livro de versos
de amanhã, volta
outra vez a ter neve ou musgo
nas tuas páginas
para que os pés
ou os olhos vão gravando sinais:
descreve-nos
de novo o mundo, as fontes
entre a espessura,
os altos arvoredos,
os planetas polares,
e o homem
nos caminhos,
nos novos caminhos,
avançandona selva, na água, no céu,
na mais nua solidão marinha,
o homem
descobrindo os últimos segredos,
o homem
regressando com um livro,
o caçador
tornando a casa com um livro,
o camponês
lavrando com um livro.
Pablo Neruda
“Da infância à morte, a ilusão envolve-nos. Só vivemos por ela e só
ela desejamos. Ilusões do amor, do ódio, da ambição, da glória,
todas essas várias formas de uma felicidade incessantemente
esperada, mantêm a nossa actividade. Elas iludem-nos sobre os nossos
sentimentos e sobre os sentimentos alheios, velando-nos a dureza do destino.
As ilusões intelectuais são relativamente raras; as ilusões afetivas
são cotidianas. Crescem sempre porque persistimos em querer interpretar
racionalmente sentimentos muitas vezes ainda envoltos nas trevas do
inconsciente. A ilusão afectiva persuade, por vezes, que entes e
coisas nos aprazem, quando, na realidade, nos são indiferentes.
Faz também acreditar na perpetuidade de sentimentos que a evolução
da nossa personalidade condena a desaparecer com a maior brevidade.
Todas essas ilusões fazem viver e aformoseiam a estrada que conduz ao
eterno abismo. Não lamentemos que tão raramente
sejam submetidas à análise.”
Gustave Le Bon - As Opiniões e as Crenças
sábado, 14 de abril de 2012
EUGÊNIO DE ANDRADE
Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenho tremer de terror
à idéia do aniquilamento. A felicidade não se torna menos verdadeira
por ter que chegar ao fim, e o pensamento e o amor não perdem
o seu valor por não durarem para sempre. Muitos homens já se
portaram orgulhosamente no cadafalso; certamente o mesmo
orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o
posto do homem no mundo. Mesmo se inicialmente as janelas
abertas da ciência fazem-nos tremer após o quente aconchego
dos mitos antropomórficos tradicionais, no final o ar fresco
revigora, e os grandes espaços têm o seu próprio esplendor.
BERTRAND RUSSELL
quinta-feira, 12 de abril de 2012
A poesia é branca:
sal de água envolta em gotas,
enruga-se e amontoa-se,
é preciso estender a pele deste planeta,
é preciso engomar o mar com a sua brancura
e vão e vêm as mãos ,
alisam as sagradas superfícies
e assim se engedram as coisas:
dia a dia fazem as mãos o mundo,
une-se o fogo ao aço,
chegam o linho, o algodão e o cotim
da faina das lavandarias
e nasce da luz uma pomba:
a pureza regressa da espuma.
Pablo Neruda
terça-feira, 10 de abril de 2012
Poucos se forem pontos estratégicos.
Muito úmidos se forem pontos de chuva.
O mais gostoso é ponto de encontro, mas às vezes desencontra.
Ou pontos de luz, um homem e uma mulher nus.
Todos são pontos. O caminho entre dois, uma reta.
Uma linha. Um caminho que caminha sozinho.
Fim da linha. Ou do fio. Fio da meada é na conversa.
Conversas são feitas de pontos de enfoque.
O palco também. Amores são pontos em comum.
Os pontos são um.
Estrela Leminski
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu rosto outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De Sangue.
De escarlate.
Hilda Hilst
segunda-feira, 9 de abril de 2012
tecnológica acelerada. Ela ocorre quando as desigualdades
dos índices de crescimento provocam um desequilíbrio
acentuado entre as estruturas existentes.
Agora que o homem projetou para fora seu sistema
nervoso central por meio da tecnologia elétrica,
o campo de batalha se deslocou para a estrutura mental
criadora e destruidora de imagens,
tanto na guerra como nos negócios."
Marshall McLuhan
Atraso Pontual
Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?
PAULO LEMINSKI
sexta-feira, 6 de abril de 2012
oportunidade de receber o bem;
e quão pouco dessa ocasião nós
apreendemos e mantemos junto a nós?
Qual perplexa e intrincada teia de aranha é a felicidade
do homem aqui, que deve entrar em acordo
com a cautela de se manter sob a ocasião, que
nada é além de um pequeno pedaço daquilo
que é nada, o tempo?
JOHN DONNE
quarta-feira, 4 de abril de 2012
Há aí um contra-senso que nos deveria advertir
quanto à desordem semântica da língua.
Por que a noite não tem o direito de nascer
como o dia?
E, no entanto, ela nasce.
Algumas noites, nós as vemos nascer,
crescer do fundo do horizonte,
invadir o espaço como um astro,
segundo um movimento ascendente vindo
da Terra.
E os objetos, perdendo sua luz aos poucos,
emergem numa forma nova,
em sua essência noturna.
Mas para nós nem a noite
nem o Mal tem essência própria.
JEAN BAUDRILLARD
Paulo Mendes Campos
terça-feira, 3 de abril de 2012
Quando os mais convencionais se inserem no que se
denomina atualidade, perdem com isto a qualidade e
a eficácia dos atos. O realismo sugere pontos de vista
desastrosos.
Se quer perder sua alma, trabalhe para salvá-la; porque
no final das contas, só salva sua alma quem pareceu
perdê-la. Aposte alto. Imagine, invente, projete,
alguma coisa sempre permanece. Por vezes, a sorte
sorri para a audácia, a única coisa inteligente.
MICHEL SERRES
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtanfo as formas visíveis deste mundo
Os dias e as noites limaram os perfis
Dessas letras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos fatigados
As vazias bibliotecas e os vazios atris
O azul e o vermelho são agora cerração
Duas palavras inúteis.
O espelho que miro
É uma coisa cinzenta
No jardim eu aspiro, amigos,
Uma lúgubre rosa da escuridão.
Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos.
JORGE LUIS BORGES
domingo, 1 de abril de 2012
Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.
Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço
- do que faço, arrependida.
Cecília Meireles