“Quando
lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas também os
seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado é
uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e
saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a
ficção transforma como nossas. Sonho lúcido e fantasia encarnada, a
ficção nos completa – a nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz
dicotomia de ter uma única vida, e os apetites e as fantasias de
desejar outras mil. Esse espaço entre a vida real e os desejos e as
fantasias, que exigem que seja mais rica e mais diversa, é preenchido
pelos livros de ficção.
No
coração de todos esses livros chameja um protesto. Quem os fabula o fez
porque não pode vive-los, e quem os lê – e neles acredita, durante a
leitura – encontra, em suas fantasias, os rostos e as aventuras que
necessitava para ampliar sua vida. Essa é a verdade que as mentiras da
ficção expressam: as mentiras que somos, as que nos consolam e que nos
desagravam das nossas nostalgias e frustrações. Assim, que confiança
podemos ter nos testemunhos dos romances sobre a sociedade que os
produz? Esses homens eram assim? Eles o eram, no sentido de que assim
queriam ser, de que assim se viam amar, sofrer e desfrutar. Essas
mentiras não documentam suas vidas, mas os demônios que as sublevaram,
os sonhos nos quais se embriagaram para que a vida que viviam fosse mais
tolerável. Uma época não está povoada somente de seres de carne e osso,
mas também de fantasmas, nos quais esses seres se transformam para
romper as barreiras que os limitam e os frustram.
As
mentiras dos romances nunca são gratuitas: preenchem as insuficiências
da vida. Por isso, quando a vida parece plena e absoluta e, graças a uma
fé que tudo justifica e absorve, os homens se conformam com seus
destinos, os romances não prestam serviço algum. As culturas religiosas
produzem poesia, teatro e, raras vezes, grandes romances. A ficção é uma
arte de sociedades em que a fé experimenta alguma crise, em que faz
falta crer em algo, onde a visão unitária, confiante e absoluta foi
substituída por uma visão rachada, e por uma incerteza crescente sobre o
mundo em que se vive e sobre o outro mundo. Além da amoralidade, as
entranhas dos romances aninham certo ceticismo. Quando a cultura
religiosa entre em crise, a vida parece escapulir dos esquemas, dogmas e
preceitos que a sujeitam e se transforma em caos: esse é o momento
privilegiado para a ficção. Suas ordens artificiais proporcionam
refúgio, segurança, e nelas se desdobram livremente aqueles apetites e
temores que a vida real incita, e não consegue saciar ou conjurar. A
ficção é um sucedâneo transitório da vida. O regresso à realidade é
sempre um empobrecimento brutal: a comprovação de que somos menos do que
sonhamos. O que significa que, ao mesmo tempo, os livros de ficção
aplacam transitoriamente a insatisfação humana e também a atiçam,
esporeando os desejos e a imaginação.
Os
inquisidores espanhóis compreenderam o perigo. Viver a vida que não se
vive é fonte de ansiedade, um desajuste com a existência que pode se
tornar rebeldia, uma atitude indócil, indisciplinada, diante do
estabelecido. É compreensível, então, que os regimes que aspiram a
controlar totalmente a vida desconfiem das obras de ficção, e que as
submetam a censuras. Sair de si mesmo, ser outro, ainda que seja
ilusoriamente, é uma maneira de ser menos escravo e de experimentar os
riscos da liberdade.”
Mário Vargas Llosa - A VERDADE DAS MENTIRAS
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