" D. Quixote é a primeira grande obra do mundo moderno.
O tema do romance de Cervantes é a alma humana, só que não se trata mais
da alma caída (como na Divina Comédia, de Dante), e sim da alma alienada.
O herói é um louco, não um pecador. D. Quixote não encarna a história humana;
é uma exceção. Ele é exemplo de um modo irônico, por negação:
não é como o resto dos homens.
As andanças do fidalgo não são uma alegoria das peregrinações do povo eleito,
mas sim de um homem perdido e solitário.
Ninguém guia D. Quixote, e seu companheiro de aventuras
não é um vidente, mas o míope senso comum.
O cavalgar do louco não obedece a nenhuma geometria nem à geografia:
é um ir e vir sem rumo e durante o qual as pousadas se transformam
em castelos e os jardins, em currais. A peregrinação de Quixote é uma
sucessão de tropeços e descalabros. A visão final de Dante é a divindade;
a de D. Quixote é um regresso a si mesmo, à realidade sem grandeza
do fidalgo pobre.
Há uma contínua oscilação entre o real e o irreal: os moinhos são
gigantes e um instante depois são moinhos de novo."
Octavio Paz - O Arco e a Lira