quarta-feira, 27 de outubro de 2010
em si mesma, enquanto simplesmente praticada, nem é
bela nem feia. Por exemplo: falar, cantar, nada disso
em si é belo, mas é na ação, na maneira como é feito,
que resulta tal; o que é bela e corretamente feito
fica belo, o que não o é fica feio.
Assim é que o amar e o Amor não é todo ele belo
e digno de ser louvado,
mas apenas o que leva a amar belamente."
PLATÃO
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Como os navios, os homens afundam de vez em quando.
Apenas a memória os salva da dispersão completa.
Nas mentes, mundos não classificados, não denominados,
não assimilados, se formam, rompem, unem, dissolvem e
harmonizam sem cessar. No mundo do pensamento, as
ideias são elementos que formam as jóias e constelações
da vida interior. Movemo-nos dentro de suas órbitas,
livremente, se seguirmos seu traçado intrincado,
escravizados ou possuídos, se tentarmos subjugá-lo.
Tudo o que é exterior não passa de um reflexo
projetado pela máquina mental.
HENRY MILLER
O destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.
Grão, no campo da vida onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? Ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar os pés nus?
Nessa esfinge da vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão
E uma voz interior, sincera , me responde:
- Quem és tu? - Operário honesto da nação.
- De onde' é que vens? - De casa.
- Onde ' que estás? - No bonde.
- Para onde vais? - Não vês? -
Para a repartição.
BASTOS TIGRE
sábado, 23 de outubro de 2010
- Cidadãos atenienses, vejo que sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: " Ao Deus Desconhecido".
( Ato dos Apóstolos)
Os gregos inventaram a geometria, a filosofia e a democracia, eram gente bastante precavida. Eles imaginavam que, para além do seu horizonte, deviam existir muitos deuses, ultrapassados ou ainda por vir, e que sempre faltaria pelo menos um nos seus templos. Dedicar um altar ao esquecido já era acalmar um pouco a sua cólera.
Paulo pregou, convencido de que seu deus era o desconhecido pelo qual o mundo antigo esperava ansiosamente.
Contudo, de tempos em tempos, a humnanidade substitui a cabeça de seus ídolos. Só o pedestal fora feito pra ficar.
" Eu sou Aquele que sou" - sou o ser cuja essência está no jogo do esconde-esconde, no ato de ocultar a minha face e de voltar por trás para vos pegar. Milênio após milênio. No fundo, eu sou a própria poesia: um mito que diz a verdade. E a verdade é que vós não podeis dispensar um poema, um sonho coletivo, uma faísca do além, se quereis viver e não apenas subsistir. Sois pequenos demais para conseguir isso sozinhos. Esquecei os números. Poderesi chegar a 5, e até 10 bilhões sobre a Terra, sem preencher a vossa insuficiência ontológica. Estareis sempre em falta. Sugeri que era culpa vossa, com a história do pecado original, para criar uma história e de passagem fazer de vós os culpados. Era, fiquem sabendo, força de expressão. Procurai outros deuses, se isso vos agrada, mas não escapareis à vertical. A gente se encontra. Ou Eu ou um Outro..."
RÉGIS DEBRAY
terça-feira, 19 de outubro de 2010
incorrigível, está sempre disponível para um novo turno de fé.
A nossa maneira de crer muda com os nossos dispositivos,
mas não a nossa disposição de acreditar. Por quê? Porque,
em virtude de uma incompletude que nos incomoda muito
mas que escapa à nossa vontade, não podemos fazer corpo
com nossos semelhantes para edificar personalidades coletivas,
distintas e duráveis, sem nos abrir a "algo que nos supere".
Pascal constatou : " O homem ultrapassa infinitamente o
homem". A imanência do sistema social não está em condições
de neutralizar, sozinha, as forças de morte e divisão, sem um
ponto de referência exterior e que não pode pertencer ao
sistema fundado por variações religiosas. O recrescimento
místico seria, então, inelutável e ninguém está em condições
de prever o seu fim. O progresso dos conhecimentos e das
ferramentas não fará, sem dúvida, cessar a pulsão vital
das crenças, e das violências a elas associadas."
Régis Debray
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
António Gedeão
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
todas as ordens, na crença de que logo em seguida o mais
soberbo templo da bela humanidade se erigirá por si mesmo.
Nesses sonhos perigosos ecoa ainda a superstição em uma
bondade miraculosa da natureza humana.
Uma subversão bem pode ser uma fonte de força em uma
humanidade debilitada, mas nunca um ordenador, arquiteto,
artista, consumidor da natureza humana.
NIETZSCHE
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
HERBERTO HELDER
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa.
Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa
da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos
imensos e incendeia as casas,
grita abertamente as giestas,
Aniquila o mundo com
seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.
HERBERTO HELDER
cuidadosas. A vossa virtude é o melhor de vós mesmos.
Seja a vossa virtude o vosso próprio ser, e não algo
estranho, uma epiderme, uma capa.
Há os que se assemelham a relógios a que se dá corda;
fazem o seu tique-taque e fazem questão que esse tique-taque
se chame virtude. E os outros se orgulham do seu quinhão de
justiça, e em nome disso tudo atropelam, de modo que o
mundo se atola na sua injustiça.
Querem expoliar os seus inimigos com sua virtude, e só se
elevam para rebaixar os demais. Estão sempre de joelhos,
em adoração, e as suas mãos juntam-se em louvor à virtude;
todavia o coração está alheio a isso tudo.
Quase todos julgam ter alguma porção de virtude;
e todos fazem questão, pelo menos, de ser
inteligentes em questão de "bem" e de "mal".
NIETZSCHE
terça-feira, 12 de outubro de 2010
os bombardeiros estamos vivos, pois que cada bomba é uma
demonstração de que o espírito não morreu ainda.
E tenha-se medo de quando as greves cessam, enquanto os
grandes proprietários estão vivos, pois que cada greve
vencida é uma prova de que um passo está sendo dado.
E isto se pode saber - tenha-se medo da hora em que o
homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois
que esta é a qualidade - base da humanidade, é a que o
distingue entre tudo no universo.
JOHN STEINBECK
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
CECÍLIA MEIRELLES
domingo, 10 de outubro de 2010
Mas as verdades esmagadoras morrem quando são
reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino,
sem o saber. A partir do momento em que sabe,
a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego
e desesperado, ele reconhece que a único elo que o
prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem.
Uma frase desmedida ressoa então:
“Apesar de tantas provações, a minha idade avançada
e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo
está bem”. O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de
Dostolevsky, dá assim a fórmula da vitória absurda.
A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.
Albert Camus- O Mito de Sísifo
SENTIMENTO DO TEMPO
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.
PAULO MENDES CAMPOS
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que
podem ser chamadas ciências conforme a nossa vontade.
Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que
fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência
de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança;
as coisas mais profundas da natureza, por superstição;
a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não
são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo.
Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis,
pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.
FRANCIS BACON
onde vivos pilares
Podem deixar ouvir confusas vozes:
e estas fazem o homem
passar através de florestas
de símbolos que o veem
com olhos familiares.
Como os ecos além
confundem seus rumores
na mais profunda
e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como am noite
e como a claridade,
Harmonizam-se os sons,
os perfumes e as cores.
CHARLES BAUDELAIRE
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Com tal leveza podes percorrer o mapa e ir
e vir ao acaso, ar e nome:
como borboletas.
Não és tu, mas a tua memória com asas.
E abrem-se os palácios,
e percorres os tesouros guardados,
e és sorriso e silêncio
e já nem precisa mais de asas.
Na noite encontras o dia, claro e durável.
Voas sobre séculos e horóscopos.
Ouves dizer que te amam
como ninguém jamais o poderia confessar.
Não tens idade nem trigo,
nem rosto nem profissão.
Podes fazer o que quiseres com palavras,
harpas,
almas...
E quando voltas ao teu casulo
já não tens medo nenhum da morte.
E em teu pensamento há néctar e pólen.
Cecília Meireles