quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Uma parte de mim sofre,
Outra pede amor,
Outra viaja, outra discute,
Uma última trabalha,
Sou todas as comunicações,
Como posso ser triste?
DRUMMOND
" Toda ação, com efeito, é assim como se apresenta:

em si mesma, enquanto simplesmente praticada, nem é

bela nem feia. Por exemplo: falar, cantar, nada disso

em si é belo, mas é na ação, na maneira como é feito,

que resulta tal; o que é bela e corretamente feito

fica belo, o que não o é fica feio.


Assim é que o amar e o Amor não é todo ele belo

e digno de ser louvado,

mas apenas o que leva a amar belamente."




PLATÃO

Adriaen Brouwer

A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... – mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcança...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na trevas
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
CECÍLIA MEIRELES

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

"A clareza é a cortesia do filósofo."

Ortega y Gasset

Como os navios, os homens afundam de vez em quando.

Apenas a memória os salva da dispersão completa.

Nas mentes, mundos não classificados, não denominados,

não assimilados, se formam, rompem, unem, dissolvem e

harmonizam sem cessar. No mundo do pensamento, as

ideias são elementos que formam as jóias e constelações

da vida interior. Movemo-nos dentro de suas órbitas,

livremente, se seguirmos seu traçado intrincado,

escravizados ou possuídos, se tentarmos subjugá-lo.

Tudo o que é exterior não passa de um reflexo

projetado pela máquina mental.

HENRY MILLER

Quem sou eu? De onde venho e onde, acaso, me leva
O destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.

Grão, no campo da vida onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? Ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar os pés nus?

Nessa esfinge da vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão
E uma voz interior, sincera , me responde:

- Quem és tu? - Operário honesto da nação.
- De onde' é que vens? - De casa.
- Onde ' que estás? - No bonde.
- Para onde vais? - Não vês? -
Para a repartição.



BASTOS TIGRE

sábado, 23 de outubro de 2010

Van Rudysdael

Quando as teorias mudam e caem por terra, quando

escolas filosóficas alargam-se e se desintegram, o

homem se arrasta para diante, sempre para a frente,

muitas vezes sob o efeito de dores,

muitas vezes inutilmente.



JOHN STEINBECK

Jules Breton

"... De pé no meio do Areópago, Paulo falou:

- Cidadãos atenienses, vejo que sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: " Ao Deus Desconhecido".


( Ato dos Apóstolos)

Os gregos inventaram a geometria, a filosofia e a democracia, eram gente bastante precavida. Eles imaginavam que, para além do seu horizonte, deviam existir muitos deuses, ultrapassados ou ainda por vir, e que sempre faltaria pelo menos um nos seus templos. Dedicar um altar ao esquecido já era acalmar um pouco a sua cólera.

Paulo pregou, convencido de que seu deus era o desconhecido pelo qual o mundo antigo esperava ansiosamente.

Contudo, de tempos em tempos, a humnanidade substitui a cabeça de seus ídolos. Só o pedestal fora feito pra ficar.


" Eu sou Aquele que sou" - sou o ser cuja essência está no jogo do esconde-esconde, no ato de ocultar a minha face e de voltar por trás para vos pegar. Milênio após milênio. No fundo, eu sou a própria poesia: um mito que diz a verdade. E a verdade é que vós não podeis dispensar um poema, um sonho coletivo, uma faísca do além, se quereis viver e não apenas subsistir. Sois pequenos demais para conseguir isso sozinhos. Esquecei os números. Poderesi chegar a 5, e até 10 bilhões sobre a Terra, sem preencher a vossa insuficiência ontológica. Estareis sempre em falta. Sugeri que era culpa vossa, com a história do pecado original, para criar uma história e de passagem fazer de vós os culpados. Era, fiquem sabendo, força de expressão. Procurai outros deuses, se isso vos agrada, mas não escapareis à vertical. A gente se encontra. Ou Eu ou um Outro..."


RÉGIS DEBRAY

Emil Lindemann

Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para
que continues me olhando.



Pablo Neruda

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Creio que eu poderia viver
como os animais...
Que não suam
e lamentam sua condição
E não ficam
insones à noite
Chorando suas faltas...


Walt Whitman
" Os ídolos rodopiam, no entanto o eixo do carrossel, o crente
incorrigível, está sempre disponível para um novo turno de fé.
A nossa maneira de crer muda com os nossos dispositivos,
mas não a nossa disposição de acreditar. Por quê? Porque,
em virtude de uma incompletude que nos incomoda muito
mas que escapa à nossa vontade, não podemos fazer corpo
com nossos semelhantes para edificar personalidades coletivas,
distintas e duráveis, sem nos abrir a "algo que nos supere".
Pascal constatou : " O homem ultrapassa infinitamente o
homem". A imanência do sistema social não está em condições
de neutralizar, sozinha, as forças de morte e divisão, sem um
ponto de referência exterior e que não pode pertencer ao
sistema fundado por variações religiosas. O recrescimento
místico seria, então, inelutável e ninguém está em condições
de prever o seu fim. O progresso dos conhecimentos e das
ferramentas não fará, sem dúvida, cessar a pulsão vital
das crenças, e das violências a elas associadas."


Régis Debray
Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,

não comia, nem bebia,

nem falava com ninguém.

Acocorava-me a um canto,

no mais escuro que houvesse,

punha os joelhos à boca

e viesse o que viesse.

Não fossem os olhos grandes

do ingénuo adolescente,

a chuva das penas brancas

a cair impertinente,

aquele incógnito rosto,

pintado em tons de aguarela,

que sonha no frio encosto

da vidraça da janela,

não fosse a imensa piedade

dos homens que não cresceram,

que ouviram, viram, ouviram,

viram, e não perceberam,

essas máscaras selectas,

antologia do espanto,

flores sem caule, flutuando

no pranto do desencanto,

se não fosse a fome e a sede

dessa humanidade exangue,

roía as unhas e os dedos

até os fazer em sangue.



António Gedeão

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Só com a morte o homem se transforma em destino.

Enquanto vive, tudo que faz é uma interrogação,

um punhado de possíveis.




André Malraux
Há fantasistas e socialistas que exortam a uma subversão de

todas as ordens, na crença de que logo em seguida o mais


soberbo templo da bela humanidade se erigirá por si mesmo.

Nesses sonhos perigosos ecoa ainda a superstição em uma

bondade miraculosa da natureza humana.


Uma subversão bem pode ser uma fonte de força em uma


humanidade debilitada, mas nunca um ordenador, arquiteto,


artista, consumidor da natureza humana.




NIETZSCHE
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.



HERBERTO HELDER

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A verdade o é por referência ao coração íntimo do homem e

não a qualquer padrão externo. Não há credo, por falso

que seja, que a fé não consiga tornar verdadeiro.


HENRY THOREAU
Há gente assim, tão pura.


Recolhe-se com a candeia


de uma pessoa.


Pensa, esgota-se, nutre-se


desse quente silêncio.


Há gente que se apossa


da loucura, e morre, e vive.


Depois levanta-se com os olhos


imensos e incendeia as casas,


grita abertamente as giestas,


Aniquila o mundo com


seu silêncio apaixonado.


Amam-me, multiplicam-me.


Só assim eu sou eterno.




HERBERTO HELDER

Gerard di Maccio

A voz da beleza, fala baixo: só se instila nas almas mais
cuidadosas. A vossa virtude é o melhor de vós mesmos.
Seja a vossa virtude o vosso próprio ser, e não algo
estranho, uma epiderme, uma capa.
Há os que se assemelham a relógios a que se dá corda;
fazem o seu tique-taque e fazem questão que esse tique-taque
se chame virtude. E os outros se orgulham do seu quinhão de
justiça, e em nome disso tudo atropelam, de modo que o
mundo se atola na sua injustiça.
Querem expoliar os seus inimigos com sua virtude, e só se
elevam para rebaixar os demais. Estão sempre de joelhos,
em adoração, e as suas mãos juntam-se em louvor à virtude;
todavia o coração está alheio a isso tudo.
Quase todos julgam ter alguma porção de virtude;
e todos fazem questão, pelo menos, de ser
inteligentes em questão de "bem" e de "mal".



NIETZSCHE

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Erik Johansson

" Nem deus, nem o homem, nem a sociedade, nem deveres

astuciosamente concebidos nos obrigam a criar uma

obra de arte profunda - é unicamente a contemplação

contínua da morte que o faz."




Imre Kertész
Tenha-se medo quando as bombas não mais caem, enquanto

os bombardeiros estamos vivos, pois que cada bomba é uma

demonstração de que o espírito não morreu ainda.

E tenha-se medo de quando as greves cessam, enquanto os

grandes proprietários estão vivos, pois que cada greve

vencida é uma prova de que um passo está sendo dado.

E isto se pode saber - tenha-se medo da hora em que o

homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois

que esta é a qualidade - base da humanidade, é a que o

distingue entre tudo no universo.


JOHN STEINBECK

Michael Cheval

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

CECÍLIA MEIRELLES

domingo, 10 de outubro de 2010

Michael Cheval

Onde cresce o perigo, cresce também o que salva.



HÖLDERLIN

Gerard Di Maccio

Mas as verdades esmagadoras morrem quando são
reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino,
sem o saber. A partir do momento em que sabe,
a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego
e desesperado, ele reconhece que a único elo que o
prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem.
Uma frase desmedida ressoa então:
“Apesar de tantas provações, a minha idade avançada
e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo
está bem”. O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de
Dostolevsky, dá assim a fórmula da vitória absurda.
A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.



Albert Camus- O Mito de Sísifo




François Chauvin

SENTIMENTO DO TEMPO



Os sapatos envelheceram depois de usados

Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados

E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,

Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam

Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar

Mas ninguém sabe dizer por que deve passar

Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz

Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia

Mas meus pais não souberam impedir

Que o sorriso se mudasse em zombaria

Sempre foi assim: vejo um quarto escuro

Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto

O esqueleto funesto de outro mundo morto

Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado

Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,

Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.

No olhar do gato passavam muitas horas

Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face

Um caminho escuro, onde a formiga passe

Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce.




PAULO MENDES CAMPOS


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

... a esperança fogosa
De ir ao longe, através das ondas,
conquistar a nudeza pagã
e a virgindade ociosa
de ermas ilhas em flor
nas solidões mdo mar...


Vicente de Carvalho

Alma Tadema

A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe

infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que

podem ser chamadas ciências conforme a nossa vontade.

Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que

fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência

de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança;

as coisas mais profundas da natureza, por superstição;

a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não

são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo.

Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis,

pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.


FRANCIS BACON
A natureza é um templo
onde vivos pilares
Podem deixar ouvir confusas vozes:
e estas fazem o homem
passar através de florestas
de símbolos que o veem
com olhos familiares.

Como os ecos além
confundem seus rumores
na mais profunda
e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como am noite
e como a claridade,
Harmonizam-se os sons,
os perfumes e as cores.


CHARLES BAUDELAIRE

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

" Só se permanece filósofo mantendo o silêncio, em certos casos."


NIETZSCHE

A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre
entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.
No baile de máscaras, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo.
Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão
pegados a nós como as penas de aves, vivemos felizes ou infelizes,
ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os
deuses para os divertirmos, como crianças que brincam com jogos
sérios.
Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente, que tudo quanto
somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo
ou não temos razão no que concluímos justo.
E sempre, desconhecendo-nos a nós mesmos e aos outros, e por isso
entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas
conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande
orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos
organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram....
FERNANDO PESSOA






Sais pelo sonho como de um casulo e voas.
Com tal leveza podes percorrer o mapa e ir
e vir ao acaso, ar e nome:
como borboletas.
Não és tu, mas a tua memória com asas.
E abrem-se os palácios,
e percorres os tesouros guardados,
e és sorriso e silêncio
e já nem precisa mais de asas.
Na noite encontras o dia, claro e durável.
Voas sobre séculos e horóscopos.
Ouves dizer que te amam
como ninguém jamais o poderia confessar.
Não tens idade nem trigo,
nem rosto nem profissão.
Podes fazer o que quiseres com palavras,
harpas,
almas...
E quando voltas ao teu casulo
já não tens medo nenhum da morte.
E em teu pensamento há néctar e pólen.


Cecília Meireles

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Diogo Dayer

" Não se pode pedir ao crítico mais do que consegue ver."


GEORGES BRAQUE


Talvez o imenso poder da pureza seja este: não deixar
a surpresa nos atingir, nem positivamente, nem de
maneira negativa. Ser puro é ser naturalmente crente,
o suficiente para não acrescentar nada de si aos
fatos. Na pessoa onde prevalece a pureza, os fatos
são aceitos de modo quase estóico, e como
ocorrências sujeitas a leis maiores da vida. A realidade
passa a estar na dependência de uma justiça oculta e
inelutável. Às vezes gostaria de possuir essa espécie
de inocência dos seres puros, quase irreais, que com
olhos benevolentes, acreditam nas palavras que carregam
as primeiras intenções, e que são cegos para as eventuais
segundas e terceiras intenções.
Porque a ausência de desconfiança e a crença nas
verdades maiores da existência, deixa a alma dos puros
intacta, parcialmente alienada das verdades cruéis da vida.


Epitáfio




Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.




Eugénio de Andrade

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

" O tédio é a pior das coisas, pois é a única que nos permite continuar vivendo depois de mortos."


PEDRO ALMODÓVAR


A fluidez oceânica inundava-o de calma, de uma serena e estupenda bonança, que absorvia através do corpo imerso. Nos ouvidos apenas um som oco de mar profundo. Se meterem os ouvidos debaixo de água vão ouvir exactamente o mesmo som – cavo e imenso, oco e pouco a pouco louco. O mundo deixa a opacidade volúvel para se tornar numa esfera de insondável vácuo. Lento, mas súbito revolveu o seu centro de gravidade e iniciou o desajeitado processo de movimentação aquática que chamamos nadar. Por sua vez, ela lia-se sem se ver noutro lugar. O Sol forte que não sentia não estorvava a realidade que lia plena de uma névoa sempiterna e baça, que tudo abafava;
Aí ficam a terra e a cidade dos Cimérios,
sempre debaixo de nevoeiro e de nuvens: nunca
os contempla o sol resplandecente com os seus raios,
nem quando sobe para o céu cheio de estrelas,
nem quando regressa do céu para a terra.
Mas uma noite terrível se estende sobre os mortais infelizes.*
As preces dirigidas a Hades e Perséfone destoavam de tal forma com a primeira realidade que vos explanei, que até a nossa personagem feminina sentiu um calafrio nas costas e deixou o livro do Poeta de lado. Caminhou languidamente em direcção ao mar qual felino de grande porte sedento se acerca das águas de um rio em plena savana. Como se as nereides faltassem ao encontro marcado, olhou com uma face algo triste e melancólica para o azul impenetrável, mas acabou por nele mergulhar. A passagem do tempo forma tendencialmente coincidências absurdas, sobretudo quando a realidade é imaginada e escrita para uma folha como uma hipótese imaginária. Deste modo, o encontro (já por vós idealizado) das únicas personagens deste texto ocorreu.
*Homero, Odisseia, XI, 14-19.