segunda-feira, 29 de novembro de 2010
- o homem de visão não goza de liberdade -, eu me exercito em
ver no escuro. Geralmente a luz parece grosseira, agressiva,
algumas vezes cruel. A noite brilha como um diamente negro,
reluz por dentro. Meu corpo de sombra sabe avaliar as sombras,
desliza entre elas, entre o silêncio delas, dir-se-ia que as conhece.
Podemos fazer quase tudo sem luz, salvo escrever.
Viver se satisfaz com penumbras, ler exige claridade.
MICHEL SERRES
Recordação de uma noite de verão
Do alto do céu um anjo enraivecido
tocou o alarme para a terra triste.
Endoidaram cem jovens pelo menos,
caíram pelo menos cem estrelas,
pelo menos cem virgens se perderam:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Nossa velha colméia pegou fogo,
nosso potro melhor quebrou a pata,
os mortos, no meu sonho, estavam vivos
e Burkus, nosso cão fiel, sumiu,
nossa criada Mári, que era muda,
esganiçou de pronto uma canção:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Os ninguéns exultavam de ousadia,
os justos encolhiam-se e o ladrão,
mesmo o mais tímido, roubou então:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Sabíamos da imperfeição dos homens,
de suas grandes dívidas de amor:
mas era singular, ainda assim,
o fim de um mundo que chegava ao fim.
Jamais tão zombeteira esteve a lua
e nunca foi menor o ser humano
do que foi nessa tal noite em questão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Perversamente em júbilo, a agonia
sobre todas as almas se abatia,
os homens imbuíram-se do fado
recôndito de cada antepassado
e, rumo a bodas de um horror sangrento,
seguia embriagado o pensamento,
o altivo servidor do ser humano,
este, por sua vez, mero aleijão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Pensava então, pensava eu, todavia,
que um deus negligenciado voltaria
à vida para me levar à morte,
mas eis que vivo e ainda sou o mesmo
no qual me converteu aquela noite
e, à espera desse deus, recordo agora
uma só noite mais que aterradora
que fez um mundo inteiro soçobrar:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
ENDRE ADY
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
não é inerte nem ineficaz, mas, pelo contrário, age em nós mesmos
com força não inferior à das lembranças conscientes, mesmo que
de forma diferente.
Há uma força do esquecido, que não pode ser medida em termos
de consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado ou
satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido,
como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível."
MICHEL SERRES
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser...
À vida nunca pedi senão que passasse por mim
sem que eu a sentisse.
Do amor apenas exigi que nunca deixasse
de ser um sonho longínquo...
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda...
e alinho na minha imaginação, confortavelmente,
figuras que habitam na minha vida interior, constantes e vivas.
Tenho um mundo de amigos dentro de mim,
com vidas próprias, definidas e imperfeitas.
FERNANDO PESSOA
O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida
Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo
Partir, ó alma, que dizes?
Colhe as horas, em suma
mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte alguma!
QUINTANA
domingo, 21 de novembro de 2010
o pensamento que se ajusta à rima, na segunda metade da vida,
tendo se tornado mais receosas, as pessoas buscam as ações,
atitudes e situações que combinem com as de sua vida anterior,
de modo que exteriormente tudo seja harmonioso: mas sua vida
já não é dominada e repetidamente orientada por um pensamento
forte; no lugar deste surge a intenção de encontrar uma rima."
NIETZSCHE
Abro as veias: irreprimível,
Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.
Pelas bordas - à margem -
Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.
Marina Tzvietáieva
(Tradução de Augusto de Campos)
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
PARA ALÉM DO PRINCIPIO DE REALIDADE
Quanto tempo tem sido desperdiçado durante o destino
do homem, na luta para decidir como será o próximo mundo do homem!
Quanto mais intenso o esforço para descobrir, tanto menos sabemos
sobre o mundo presente em que vivemos. Aquele mundo encantador
que conhecemos, em que vivemos, que nos deu tudo o que tinha,
é aquele que, segundo os pregadores e os prelados, deve estar
menos em nossos pensamentos. O homem foi recomendado, ordenado,
desde o dia em que nasceu, a dizer-lhe adeus. Oh, já chega que se
abuse assim desta agradável terra! Não é uma triste verdade que ela
seja o nosso lar. Não nos desse ela mais do que um simples abrigo,
simples vestuário, simples alimento, adicionando-se o lírio e a rosa,
a maçã e a pêra, e seria um lar adequado para o homem mortal ou imortal.
SEAN O'CASEY
Doçura
Nasci dura, heróica, solitária e em pé.
E encontrei meu contraponto na paisagem
sem pitoresco e sem beleza.
A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual.
E desafio a morte.
Eu - eu sou a minha própria morte.
E ninguém vai mais longe.
O que há de bárbaro em mim
procura o bárbaro e cruel fora de mim.
Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas
que vacilam às chamas da fogueira.
Sou uma árvore que arde com duro prazer.
Só uma doçura me possui:
a conivência com o mundo.
Eu amo a minha cruz,
a que doloridamente carrego.
É o mínimo que posso fazer de minha vida:
aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.
Clarice Lispector
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
e os que amam o resultado, uns se interessam pelo desenrolar,
pelas etapas, pelas expressões sucessivas do pensamento ou
da ação; os outros, pela expressão final, excluindo todo o resto.
Os últimos nos apresentam uma fórmula, sem revelar o caminho
que os levou a ela. Seja por pudor, seja por esterilidade, não
conseguem livrar-se da superstição da concisão. Gostariam
de dizer tudo numa página, numa frase, numa palavra.
Alguns o conseguem, raramente, é bom que se diga: o
laconismo deve se resignar ao silêncio, se não deseja cair na
profundidade falsamente enigmática.
EMIL CIORAN
Doce ira, doce mal, doce brandura,
Doce afã, doce peso que hei sentido,
Doce falar tão docemente ouvido
E que é doce de luz ou de aura pura.
Alma, sofre calada o que tortura,
Mitiga o doce afã que te há ofendido
Com o doce louvor que hás recebido
Por esta que é minha única ventura.
Dia virá que suspirando diga
Alguém cheio de inveja: Assáz sofrera
Este por belo amor e seu enredo.
Outros: Ó sorte dura e tão imiga!
Por que esta doce dama não nascera
Pouco mais tarde ou eu pouco mais cedo?
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- Francesco Petrarca
(Tradução de Almansur Haddad)
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quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Mas se a danação é eterna!
Um homem que deseja mutilar-se é
bem condenado, não é mesmo?
Eu me creio no inferno, logo estou nele (...)
E pensemos em mim. Isso me faz sentir
pouca falta do mundo.
Tenho a sorte de não sofrer mais.
Minha vida não passou de doces loucuras, é lastimável."
" Quis dizer o que está dito, literalmente
e em todos os sentidos."
ARTHUR RIMBAUD
domingo, 7 de novembro de 2010
O que sabe cantar, esse, que cante.
O que sabe beber, que beba bem.
Mas se for eloqüente não declame
quando a conversa decorre em tom vulgar
e se for um poeta extravagante
não se ponha importuno a recitar.
De Febo foram estes os conselhos:
os conselhos de Febo seguirei.
É na boca sagrada deste deus
que nasce um rio de palavras infalíveis.
Mas agora regresso às coisas mais terrenas.
Se com sabedoria ao amor o coração entregas,
deste tratado observando as regras
dos triunfos o fruto colherás
e será teu aquilo que desejas.
Ovidio - Arte de Amar
Sem Segunda Tróia
Por que culpá-la por encher minha existência
De miséria e, mais tarde, enquanto a ação expande,
Aos ignorantes ensinar a violência,
Ou atirar rua pequena contra grande,
Mesmo sem a coragem que o anelar reclama?
Como seria tranqüila, com aquela mente
Que a nobreza moldou singela como a flama?
Ou com o encanto do arco retesado, um ente
Não natural em nosso mundo, por seu jeito
Muito severo e sempre altivo e singular?
Ora, sendo como é, que mais teria feito?
Havia nova Tróia para ela queimar?
William Butler Yeats
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
O estudo tem sido para mim o remédio soberano contra os desgostos da vida,
e jamais tive tristeza de que uma hora de leitura não me tenha livrado.
Acordo de manhã com uma alegria secreta; vejo a luz com uma espécie
de arrebatamento. Todo o resto do dia fico contente.
Passo a noite sem acordar e, à noite, quando vou para a cama, uma
espécie de entorpecimento me impede de fazer reflexões.
Quando viajei pelos países estrangeiros, liguei-me a eles como ao meu
próprio: tomei parte da sorte deles, e gostaria que estivessem num
estado florescente.
Nunca me irritei de passar por distraído: isso me permitiu arriscar-me
a cometer muitas negligências que me teriam encabulado.
Quanto à maior parte das pessoas, prefiro aprová-las a escutá-las.
Jamais vi correrem lágrimas sem me enternecer.
Perdoo facilmente, pela razão de que não sei odiar. Parece-me que o
ódio é doloroso. Quando alguém quis se reconciliar comigo, senti minha
vaidade lisonjeada e parei de ver como inimigo um homem que me
prestava o serviço de me dar uma boa opinião de mim.
Quando se esperou que eu brilhasse numa conversa, jamais o fiz.
Prefiro ter um homem de espírito a me apoiar do que muitos tolos a me aprovar.
Se eu soubesse de uma coisa útil para minha nação que fosse
destruidora para outra, não a proporia ao meu príncipe, porque sou
homem antes de ser francês, (ou então) porque sou necessariamente
homem, e só sou francês por acaso.
Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial
à minha família, eu a expulsaria do meu espírito. Se soubesse de alguma
coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, eu tentaria
esquecê-la. Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha pátria, e que
fosse prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao
gênero humano, eu a consideraria um crime.
Não esposo opiniões, exceto as dos livros de Euclides.
Eu dizia: “Não faço parte das vinte pessoas que conhecem essas ciências
em Paris, nem das cinquenta mil que crêem conhecê-la”.
Alguém me reprochou de ter mudado a seu respeito. Eu lhe disse:
“Se é uma mudança para você, é uma revolução para mim”.
MONTESQUIEU
Como discutem e como gritam!
Como desconfiam e se desesperam!
Nunca param de brigar!
Que tua vida se ponha entre eles, inalterável e pura
Como uma língua de luz
E lhes imponha silêncio com sua formosura.
Que cruéis os torna a cobiça e o ciúme! Como
Violências disfarçadas sedentas de sangue são suas palavras.
Ponha-se entre seus corações irados e que
Teu olhar sublime caia sobre eles como cai a indulgente
Paz do anoitecer sobre a batalha do dia.
Deixe que olhem tua face
E que assim compreendam o sentido de todas as coisas.
Que te amem, e assim amem um ao outro.
Vem ocupar teu lugar nos braços do Eterno.
Abre e levanta teu coração ao nascer do sol, como uma nova flor.
E quando o sol se pôr, inclina tua cabeça e reze
Em silêncio a oração da tarde.
TAGORE
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.
AUGUSTO F. SCHMIDT