quinta-feira, 31 de maio de 2012


"Não achou resposta, as respostas não vêm sempre
que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes
que ter de ficar simplesmente à espera delas
é a única resposta possível."

José Saramago -  Ensaio sobre a Cegueira

Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, 
e compreendo que todo o meu horror
de morrer está contido em meu ciúme de vida.
Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores
e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue.
Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta...
Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte
com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror.



ALBERT CAMUS
Mikhail Nesterov

Uma noite de lua pálida e gerânios

ele viria com boca e mãos incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo

o que não for natal como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

- só a mulher entre as coisas envelhecee.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa? 
 
 
ADÉLIA PRADO

quarta-feira, 30 de maio de 2012


«A nossa vida é um relâmpago muito breve,

mas temos sempre tempo.»


Nikos Kazantzakis

                                              A inspiração

" A tua inspiração capta as ideias que se amontoam, como uma
grande nuvem sobre o planeta.
Nuvem que foi muitas vezes baptizada como «noosfera».
No seu interior as ideias misturam-se, tornam-se híbridas, fundem-se.
Ficas a saber que as ideias são como seres independentes.
Têm a sua própria evolução, a sua própria selecção,
a sua própria mutação.
São unicamente filhas dos nossos cérebros.
Já existiam antes dos humanos e continuarão a existir depois.
Umas propagam-se, outras vivem em autarcia.
Outras aguardam para surgirem só no melhor momento.
Outras planam generosamente para serem agarradas
por sonhadores e artistas.
Não obstante, sabes que também tu podes colher estas ideias.
Cada vez que te apetecer, podes visitar a noosfera e retirar tudo
aquilo de que necessitas para criar no teu domínio privilegiado.
Mas não esqueças de que essas ideias não provêm de ti.
A tua criatividade consistirá em ligá-las de forma diferente.
Debruça-te sobre a noosfera. A tua memória aumenta para armazenar
ideias, compará-las, sistematizá-las, fazê-las evoluir
no teu laboratório espiritual pessoal."

Bernard Werber  - "O Livro da Viagem"

Por felicidade, contudo, o que é o ser?
- Não há senão maneiras de ser, sucessivas.
Há tantas quanto objetos.
Tantas quantos os batimentos de pálpebras.
Tanto quanto, tornando-se nosso regime,
um objeto nos concerne, também o nosso olhar o cerca,
o discerne. Trata-se, graças aos deuses,
de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.
Sim, só o artista, então, sabe como fazer.
Deixa do olhar, atira ao alvo.
O objeto, é certo, acusa o golpe.
A verdade afasta-se em voo, indene.
A metamorfose aconteceu.


Francis Ponge.  --   Alguns Poemas

domingo, 27 de maio de 2012

( Jimmy Lawlor)

O sentido nasce quando o sentido muda, seja de

direção ou de significado; quando um fluxo toma

outra direção.

 

 

 

MICHEL SERRES


Ninguém, nenhum princípio, nenhuma ideia tem validade por

si mesma. O que é válido é somente aquele tanto que é

realizado por todos os homens em comum. As pessoas

sempre se preocupam com o destino do gênio. Eu nunca

me preocupei pelo gênio: o gênio toma conta do gênio

num homem. Minha preocupação sempre se voltou para

o joão-ninguém, para o homem que se perde na confusão,

o homem que é tão comum, que sua presença nem chega

a ser notada. Um gênio não inspira outro. Todos os gênios

são sanguessugas, por assim dizer. Nutrem-se da mesma

fonte - o sangue da vida. A coisa mais importante para o

gênio é se fazer inútil, ser absorvido pelo fluxo comum,

tornar-se um peixe de novo e não uma aberração da

Natureza.

 

 

 

 

HENRY MILLER


Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.

Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.

Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.

Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras

lavra um poder mais lúbrico de antros.

Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação

maior de horizontes.




MANOEL DE BARROS

quinta-feira, 24 de maio de 2012


"Falaram-me os homens em humanidade
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade
vi vários homens assombrosamente diferentes entre si
cada um separado do outro por um espaço sem homens."
Alberto Caeiro

«Os povos primitivos não conheciam a necessidade de dividir o tempo em
filigranas. Para os antigos não existiam minutos ou segundos. 
Artistas como
Stevenson ou Gauguin fugiram da Europa e aportaram em ilhas onde não
havia relógios. Nem o carteiro nem o telefone apoquentavam Platão.
Virgílio nunca precisou de correr para apanhar um comboio. Descartes
perdeu-se em pensamentos nos canais de Amesterdã. 
Hoje, porém,
os nossos movimentos são regidos por frações exatas de tempo.
Até mesmo a vigésima parte de um segundo começa a não mais
ser irrelevante em certas áreas técnicas.»




Paul Valéry  -  «A Busca da Inteligência»
(John William Godward)
Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
- Ah, como dói viver quando falta a esperança!


MANUEL BANDEIRA

segunda-feira, 21 de maio de 2012

(Kustanovich)
E, aquele que não morou nunca em seus próprios abismos
nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas,
não foi marcado.
Não será exposto às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema. 


Manoel de barros

Que é que eu penso do amor? — Em suma não penso nada.
Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado
de dentro, eu o vejo em existência não em essência.
O que quero conhecer - o amor - é exatamente a matéria
que uso para falar - o discurso amoroso.
A reflexão me é certamente permitida, mas essa reflexão
é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna
nunca reflexividade: excluído da lógica - que supõe
linguagens exteriores umas as outras - não posso pretender
pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse
sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o
conceito "pelo rabo": por flashes, fórmulas, surpresas de
expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário;
estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado:
'O lugar mais sombrio...' - diz um provérbio chinês -
'é sempre embaixo da lâmpada
.'

ROLAND BARTHES

(Martha Walter)
Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio


Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.



Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.






MURILO MENDES

domingo, 20 de maio de 2012

(Lado Tvedoradze)

Um moralista é, quase sempre, um hipócrita;
uma moralista é, invariavelmente, um bagulho.


Oscar Wilde
(Howard Behrens)
Na luz, o mundo continua a ser nosso primeiro e último amor...


Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer e que,
de agora em diante, não recusamos a adiar para mais tarde.
Na terra dolorosa, ela é o joio inesgotável, o amargo alimento,
o vento forte que vem dos mares, a antiga e a nova aurora.

A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo
das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos calorosos
ou maravilhados.
O tempo caminha com ele.
O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo.


ALBERT CAMUS
(Ivailo Petrov)
Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

Fernando Pessoa

quinta-feira, 17 de maio de 2012

(Vik Muniz)
"Todas as tragédias que se podem imaginar reduzem-se
a uma mesma e única tragédia: o transcorrer do tempo".



Simone Weil
(Kacper Kalinowski)
«Chamamos ao belo ideia do belo. Este deve ser concebido como ideia e, ao
mesmo tempo, como a ideia sob forma particular; quer dizer, como ideal.
O belo, já o dissemos, é a ideia; não a ideia abstracta, anterior à sua
manifestação, não realizada, mas a ideia concreta ou realizada, inseparável
da forma, como esta o é do principio que nela aparece. Ainda menos
devemos ver na ideia uma pura generalidade ou uma colecção de qualidades
abstraídas dos objectos reais. A ideia é o fundo, a própria essência de toda
a existência, o tipo, unidade real e viva da qual os objectos visíveis não
são mais que a realização exterior. Assim, a verdadeira ideia, a ideia
concreta, é a que resume a totalidade dos elementos desenvolvidos e
manifestados pelo conjunto dos seres. Numa palavra, a ideia é um todo, a
harmoniosa unidade deste conjunto universal que se processa eternamente
na natureza e no mundo moral ou do espírito.

Só deste modo a ideia é verdade, e verdade total.

Tudo quanto existe, portanto, só é verdadeiro na medida em que é a ideia em
estado de existência; pois a ideia é a verdadeira e absoluta realidade.
Nada do que aparece como real aos sentidos e à consciência é verdadeiro por
ser real, mas por corresponder à ideia, realizar a ideia. De outro modo,
o real é uma pura aparência.»


Georg Hegel -  «Do Belo e Suas Formas»




A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?


Jorge Luis Borges

quarta-feira, 16 de maio de 2012

(Winslow Homer)
Não há amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular.


Albert Camus

(Antonio Mancini)
(...) Que faz aí ao ler. Lendo, fica-se a saber quase tudo,
eu também leio, algo portanto saberás, agora já não estou
tão certa, terás então de ler doutra maneira, como?
Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua,
a que lhe for própria... há quem leve a vida inteira a ler
sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura; ficam
pegados à página, não percebem que as palavras são
apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio,
se estão ali é para que possamos chegar à outra margem,
a outra margem é que importa.

José Saramago - A caverna
(Catherine Beaudette)
Não me importa a palavra, esta corriqueira.

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,

os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",

o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível

muleta que me apoia.

Quem entender a linguagem entende Deus

cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,

se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.
 
 


ADÉLIA PRADO

terça-feira, 15 de maio de 2012

(Gleb Goloubetski)
"Ah", disse o rato, "o mundo torna-se cada vez mais estreito. A princípio era
tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz
com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as
paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para
a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para
a qual eu corro".
- "Você precisa mudar de direção", disse o gato, e devorou-o."



FRANZ KAFKA
(Roberto Liang)
(...) Sofrer é desnecessário. Mas temos de sofrer para compreender que é assim.
Além disso, é só então que o verdadeiro significado do sofrimento
humano se torna claro. No derradeiro momento desesperado - quando
não podemos sofrer mais! - acontece qualquer coisa que tem a natureza
de um milagre. A grande ferida aberta pela qual se escoava o sangue da
vida fecha-se, o organismo desabrocha como uma rosa.
Somos «livres», finalmente (...).
Não são as lágrimas que mantêm viva a árvore da vida,
mas sim o conhecimento de que a liberdade é real e eterna.


Henry Miller -  'Plexus'
(Anne Bachelier)




Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.




Edgar Allan Poe

segunda-feira, 14 de maio de 2012






Somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros.
Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés:
estamos biologicamente obrigados ao falso.



Emil Cioran

“Uma das maiores realizações que se espera da vida é a paixão, um encontro amoroso intenso, pleno.
O problema é que não temos segurança dele. Quanto mais me apaixono, maior o risco de me iludir.
A paixão — do grego pathos, que designa a situação em que sou passivo (em oposição à ação)
e minha razão fica inibida — não é boa juíza de caráter ou de relações.
O encontro emocional intenso pode dar errado. Sua base pode ser frágil. Por isso, parece
necessário cada pessoa construir o sentido de sua vida (seu ‘eixo’) sozinha, e balizar
a relação com o outro por essa prévia definição pessoal. (…) A mídia fala muito em paixão
e pouco em amor. O amor sempre aparece como algo menor que a paixão.
O coração não dispara. Parece coisa de velho. Não assitimos a histórias de amor, só de paixão.
Talvez esteja na hora de começarmos a contar histórias de amor, não só de enganos.
Aprendemos a viver escutando narrativas.
É hora de pensar que ‘foram felizes para sempre’ só é possível com o amor,
não com o fulgor passional.”

Renato Janine Ribeiro - “A insuportável liberdade do amor”


(Frederic E. Church)


Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.


Jorge Luis Borges

domingo, 13 de maio de 2012

(Linda McCluskey)


"A única lei da história é o imprevisto."

G. K. Chesterton.
(Adrian Borda)



"E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes,
 maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista,
nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma.
Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência
 da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna;
um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e
nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos
faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus
 dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra
coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse,
 da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes,
repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que
 ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas,
 o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação
 de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava
 ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância
– irmãos siameses que não estão pegados."



Fernando Pessoa
Em poltronas puídas, as cortesãs velhas,
Lívidas, pintadas, olhar terno e fatal,
Seduzindo e fazendo de suas orelhas
Cair um tilintar de pedras e metal;

Em redor do jogo, rostos encarquilhados,

Os lábios sem cor, as maxilas sem um dente,
Por febre infernal, os dedos congestionados,
Palpando a bolsa vazia ou o seio fremente;

Sob os sujos tetos uma fila de lustres

E de lamparinas, com a luz a projetar
Sobre as frontes medonhas de poetas ilustres
Que ali seus suores sangrentos vêm esbanjar;

Eis o negro cenário que em sonho noturno

Vi desenrolar-se sob meu olhar cioso.
Eu próprio, num canto do antro taciturno,
Me vi pensativo, frio, mudo, invejoso,

Invejando a paixão dessa gente obstinada,

Dessas velhas putas a fúnebre destreza,
Todos galhardamente dando-me a chapada,
Quer do seu orgulho, quer da sua beleza!

E meu coração assustou-se de invejar

Gente correndo p'ró abismo, alucinada,
E que, ébria do seu sangue, prefere cortejar,
Em suma, a dor à morte e o inferno ao nada!


Charles Baudelaire

quinta-feira, 10 de maio de 2012

                                             DI CAVALCANTI


Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir
de loucos, mas enlouquecemos à nossa maneira e na
nossa hora, não precisam nos empurrar.



GILLES DELEUZE
                                                     ADRIAN BORDA



Como escritor, poderá alguém fazer a experiência de que quanto
mais precisa, esmerada e adequadamente se expressar, tanto mais
difícil de entender será o resultado literário, ao passo que quando
o faz de forma laxa e irresponsável se vê recompensado com uma
segura inteligibilidade. De nada serve evitar asceticamente todos
os elementos da linguagem especializada e todas as alusões a

esferas culturais não estabelecidas. O rigor e a pureza da textura
verbal, inclusive na extrema simplicidade, criam antes um vazio.
O desmazelo, o nadar com a corrente familiar do discurso, é um
sinal de vinculação e de contacto: sabe-se o que se quer porque
se sabe o que o outro quer. Enfrentar a coisa na expressão, em vez
da comunicação, é suspeitoso: o específico, o que não está
acolhido no esquematismo, parece uma desconsideração, um
sintoma de excentricidade, quase de confusão. A lógica do nosso
tempo, que tanto se ufana da sua claridade, acolheu ingenuamente
tal perversão na categoria da linguagem quotidiana.
A expressão vaga permite a quem a ouve ter uma ideia aproximada
do que é que lhe agrada e do que, de qualquer modo, opina.
A rigorosa exige a univocidade da concepção, o esforço do conceito,
qualidades de que os homens conscientemente se desacostumam,
e encoraja-os à suspensão dos juízos correntes perante todo o
conteúdo e, assim, a uma automarginalização a que energicamente
resistem. É-lhes inteligível só o que não precisam de compreender;
só o verdadeiramente alienado, a palavra cunhada pelo comércio,
os afeta como familiar que é. Poucas coisas há que tanto contribuam
para a desmoralização dos intelectuais. Quem pretender evitá-la deverá,
em todo o conselho de atender só à comunicação, vislumbrar
uma traição ao comunicado.


THEODORE ADORNO

                                                                     ISMAEL NERY



REMORSO
 

Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera
 
Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!
 
Sinto que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice
Mártir da hipocrisia ou da virtude.
 

OLAVO BILAC

quarta-feira, 9 de maio de 2012

(FRANÇOIS LE MOYNE)


" Ainda que tudo que a nós chegou por relatos do passado fosse
verdadeiro e conhecido por alguém,
seria menos que nada em comparação com o que é desconhecido."


MONTAIGNE
(FELIX MAS)



"Algumas naturezas vivem uma segunda puberdade, enquanto outras são
jovens apenas uma vez. Isso não é privilégio dos artistas.
Não é um presente da natureza.
Isso deve ser conquistado pelo esforço; esforço livre de moral
e que envolve visão, audição, voz, bater de coração
- o que pode ser chamado de capacidade de vida..."


Goethe

Amar a morte

Amar de peito aberto a morte.

Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama

uma bela mulher
e inteligente. Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.

Affonso Romano de Sant'Anna

terça-feira, 8 de maio de 2012

(Winslow Homer)



No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração. 



José Saramago

" A grandeza de um artista não se mede pelos belos
sentimentos que desperta. Ela se mede pelo grau em
que aproxima do grande estilo. O grande estilo nasce
quando o belo obtém vitória sobre o monstruoso.
Este grande estilo tem em comum com a grande paixão
preocupar-se pouco em agradar, esquecer-se de
convencer, dirigir, querer... Dominar o caos que se é;
obrigar seu caos a tornar-se forma: tornar lógica,
simples, inteira, uma matemática,
uma lei - tal é aqui a grande ambição."


NIETZSCHE


                               ETC
Para que o mundo exista, existimos.
Pois seja.
Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.
O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.
Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e... nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.
Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim... que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.
Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.
Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?
Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.
O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.
Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.
Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.
Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.

CASSIANO RICARDO

segunda-feira, 7 de maio de 2012

MAURICE PENDERGAST

Os seres humanos não habitam apenas no espaço físico

ou geométrico, vivem também, e simultaneamente,

em espaços afetivos, estéticos, sociais, históricos,

espaços de significação, em geral.


Michel Serres

EARLE EYVIND
"A arte é a sombra do homem projetada sobre a natureza. Que desapareçam
juntos, sorvidos pelo sol!
O imenso tesouro da natureza passa através de
nossos dedos. A inteligência humana quer colher a água que corre nas
malhas de uma rede. Nossa música é ilusão. A nossa escala de sons,
as nossas gamas são invenções. Não correspondem a nenhum som existente.
É uma convenção do espírito entre os sons reais, uma aplicação do
sistema métrico ao infinito móbil. O espírito carecia dessa mentira para
compreender o incompreensível; e, como queria nele acreditar, acabou
acreditando. Mas isso não é verdade. Isso não tem vida. E a satisfação
que proporciona ao espírito essa ordem criada por ele, só foi conseguida
ao falsearmos a intuição direta do que existe. De tempos em tempos, em
contato passageiro com a terra, um gênio entrevê bruscamente a
torrente da realidade que está fora dos quadros da arte.
Racham-se as represas. A natureza torna a entrar por uma frincha.
Mas logo depois a brecha é tapada. Salvaguarda necessária à razão humana!
Esta pereceria, caso seus olhos encontrassem o de Jeová."



ROMAIN ROLLAND
FOTOGRAFIA : Graça Loureiro
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.



António Gedeão

domingo, 6 de maio de 2012

OTTO FRELLO
Um homem velho é uma coisa réles,

Um casaco rasgado sobre uma vara, a não ser

Que a alma bata palmas e cante em voz alta

Para cada rasgão na sua vestimenta mortal.



WILLIAM YEATS
ANDREAS ACHENBACH
" ... a batalha horrível, incessante, que a mediocridade trava

contra o homem superior. Se tem dor de cabeça, passará por

louco. Se tem vivacidade, será insociável. Se para resistir a

esse batalhão de pigmeus, buscar em você mesmo forças

superiores, os seus melhores amigos exclamarão que você

quer devorar tudo, que tem a pretensão de dominar, de

tiranizar. Enfim, as suas qualidades tornar-se-ão defeitos,

os defeitos tornar-se-ão vícios e as virtudes serão crimes."



HONORÉ DE BALZAC
ALFRED GLOCKEL
Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

MARIO DE ANDRADE


sexta-feira, 4 de maio de 2012

ELYSEE MACLET
“Não basta pensar, é preciso sentir nosso destino”.



MIGUEL DE UNAMUNO