terça-feira, 1 de maio de 2012

Palavras, o lucro de um quarto de hora arrancado à árvore calcinada da linguagem, entre os bons dias e as boas noites, portas de entrada e saída e entrada de um corredor que vai de parte nenhuma a nenhum lugar.

Damos voltas e voltas no ventre animal, no ventre mineral, no ventre temporal. Encontrar a saída: o poema.

Obstinação desse rosto onde os meus olhares se quebram. Rosto armado, invicto diante de uma paisagem de ruínas, assaltando o segredo. Melancolia de vulcão.

O benévolo focinho de pedra de papelão do Chefe, do Condutor, fetiche do século; os eus, tus, eles, tecedores de teias de aranha, pronomes de unhas afiadas; as divindades sem rosto, abstractas. Ele e nós, Nós e Ele: ninguém e nenhum. Deus pai desforra-se em cada um destes ídolos.

O instante paralisa-se, brancura compacta que cega e não dá resposta e se desvanece, bloco empurrado por correntes circulares. Há-de voltar.

Arrancar as máscaras da fantasia, espetar uma flecha no centro sensível: provocar a erupção.

Cortar o cordão umbilical, matar de morte bem morta a Mãe: crime que o poeta moderno cometeu por todos, em nome de todos. Resta ao novo poeta descobrir a Mulher.

Falar por falar, arrancar sons à desesperada, escrever no ditado o que diz o voo da mosca, enegrecer. O tempo abre-se em dois: hora do salto mortal.


II

Palavras, frases, sílabas, astros que giram em redor de um centro fixo. Dois corpos, muitos seres que se encontram numa palavra. O papel cobre-se de letras indeléveis, que ninguém disse, que ninguém ditou, que ali caíram e ardem e queimam e apagam. Assim, a poesia existe, o amor existe. E se eu não existo, existes tu.

Por toda a parte aqueles forçados à solidão começam a criar as palavras do novo diálogo.

O curso de água. O sopro de saúde. Uma garota inclinada sobre o seu passado. O vinho, o fogo, a guitarra, a sobremesa. Um muro de veludo encarnado na praça de um povoado. As aclamações, a cavalaria reluzente entrando na cidade, a população apreensiva. A irrupção do branco, do verde, das chamas. O que é fácil por demais, o que se escreve a sós: a poesia.

O poema prepara uma ordem amorosa. Prevê um homem-sol e uma mulher-lua, ele livre do seu poder, ela livre da sua escravidão, e amores implacáveis raiando o espaço negro. Tudo há-de ceder a essas águias incandescentes.

Pelas ameias adiante o canto da alvorada. A justiça poética incendeia campos de opróbrio: não há lugar para a nostalgia, o eu, o nome próprio.

Todo o poema se realiza às custas do poeta.

Meio-dia futuro, árvore imensa de folhagem invisível. Nas praças os homens e as mulheres cantam o canto solar, fonte de transparências. Cobre-me o amarelo marulhar: nada de meu falará pela minha boca.

Quando a História dorme, fala nos sonhos: diante do povoado adormecido o poema é uma constelação de sangue. Quando a História desperta, a imagem faz-se acto, acontece o poema: a poesia entra em acção.

Merece o que sonhas.


 Octavio Paz

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