quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
descrever, conceber. A queda dos corpos e a morte favorecem essa paixão.
Quem não tem o dom de vida faz filosofia. A vida leva tempo para emergir
do conceito, palavra ou nome; a criança leva tempo para deixar o código.
Caminho sempre frustrado no fim. Infinito. Extenuante. Que retorna
bruscamente aos mortos da livraria. Já não ouvimos, nas ruas e nos vales,
senão ideias, palavra ou nomes, trazidos pelos gritos e prantos.
MICHEL SERRES
domingo, 24 de janeiro de 2010
meditado transtorno de todos os sentidos.
Ele busca a si mesmo, esgota em si todos os venenos.
Uma tortura inefável, na qual precisa de toda a fé,
de toda a força sobre-humana, na qual se torna
entre todos, o grande doente, o grande criminoso,
o grande maldito - e o sábio supremo - porque
cultiva a alma, já rica, mais do que ninguém.
ARTUR RIMBAUD
Um poema deve ser palpável, silencioso,
como um fruto redondo.
Mudo
como os velhos medalhões ao toque dos dedos.
Silente
como o gasto peitoril de uma janela em que cresceu o musgo.
Um poema deve ser calado
como o vôo dos pássaros.
Como a lua que sobe,
um poema deve ser imóvel
no tempo,
deixando, memória por memória, o pensamento,
como a lua detrás das folhas de inverno;
deixando-o como, ramo a ramo, a lua solta
as árvores emaranhadas na noite.
Um poema deve ser imóvel
no tempo
como a lua que sobe.
Um poema deve ser igual a:
não a verdade.
Para toda a história da dor,
uma porta franqueada e uma folha de ácer.
Para o amor,
as gramíneas inclinadas e duas luzes sobre o mar.
Um poema deve ser,
e não significar.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
linguagem - isto é, baseia-se na linguagem enquanto criadora
de ilusões, não na linguagem como meio de transmitir realidades.
Tudo quanto torne uma linguagem mais precisa e prática,
tudo que contribua para acelerar a comunicação e facilitar
a compreensão é contrário à função da linguagem como
instrumento poético.
PAUL VALÉRY
Come away, oh human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For th world's more full weeping
Than you can understand
.........................................................
Vem agora, ó filho do Homem!
Para as águas , para os ermos
Com uma fada, de mãos dadas
POis há no mundo, mais pranto
Do que possas entender.
WILLIAM YEATS
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
acaso. Uma parte de cada vida, e mesmo das vidas pouco
dignas de atenção, passa-se à procura das razões de ser,
dos pontos de partida, das origens.
Quando todos os cálculos complicados se evidenciam falsos,
quando os próprios filósofos não têm nada mais a nos dizer,
é desculpável que nos voltemos para o gorjeio fortuito
dos pássaros, ou para o longínquo contrapeso dos astros.
A verdade é que muitos caminhos não conduzem a parte
alguma e muitas somas não se adicionam jamais.
MARGUERITE YOURCENAR - MEMÓRIAS DE ADRIANO
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte!
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
RICARDO REIS
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
a questão é sempre, em qualquer sentido, a autoconservação.
Sócrates e Platão estão certos: o que quer que o homem faça,
ele sempre faz o bem, isto é: o que lhe parece bom (útil)
segundo o grau de seu intelecto, segundo a eventual
medida de sua racionalidade.
A maldade não tem por objetivo o sofrimento do outro em si,
mas nosso próprio prazer. Assim também, a compaixão não
tem por objetivo o prazer do outro. Sem prazer não há vida;
a luta pelo prazer é a luta pela vida. Se o individuo trava
essa luta de maneira que o chamem de "bom" ou de maneira
que o chamem de "mau", é algo determinado pela medida e
a natureza de seu intelecto.
NIETZSCHE
Overmundo
Os pinheiros assobiam, a tempestade chega:
Os cavalos bebem na mão da tempestade.
Amarro o navio no canto do jardim
E bato à porta do castelo na Espanha.
Soam os tambores do vento.
“Overmundo, Overmundo, que é dos teus oráculos,
Do aparelho de precisão para medir os sonhos,
E da rosa que pega fogo no inimigo?”
Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante,
Que anda, voa, está em toda a parte
E não consegue pousar em ponto algum.
Observai sua armadura de penas
E ouvi seu grito eletrônico.
“Overmundo expirou ao descobrir quem era”,
Anunciam de dentro do castelo na Espanha.
“O tempo é o mesmo desde o princípio da criação”,
Respondem os homens futuros pela minha voz.
MURILO MENDES
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
é hoje muito maior do que antigamente. Porque as profissões
de outrora, pelo menos para boa parte das pessoas, seriam
inconcebíveis sem um apego passional: os camponeses apegados
a sua terra; os sapateiros, que conheciam de cor os pés de todos
os moradores do povoado; os guardas-florestais; os jardineiros;
acho que até mesmo os soldados matavam com paixão.
O sentido da vida não era um problema, estava com eles, de
modo inteiramente natural, em suas oficinas, em suas terras.
Cada profissão criava sua própria mentalidade, sua própria
maneira de ser. Um médico pensava de forma diferente de um
camponês, um militar tinha um comportamento diferente de
um professor.
Hoje somos todos parecidos, todos unidos pela indiferença
comum em relação ao nosso trabalho. Essa indiferença se
tornou paixão. A única grande paixão coletiva do nosso
tempo.
A IDENTIDADE - MILAN KUNDERA
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
confiar nos demais, exceto no caso em que haja alguma
razão concreta para a desconfiança. Acreditar nas pessoas,
aceitar suas palavras, é um dos aspectos principais, se não
o principal, da conversação."
..............................................................................
"O intelecto e os sentidos humanos são de fato
intrinsecamente falíveis e enganosos, mas, de modo algum,
inveteradamnte assim. As máquinas são intrinsecamente
passíveis de se quebrar, mas tal não acontece (frequentemente)
às boas máquinas."
..............................................................................
JOHN AUSTIN
extasia-se o olhar que os recantos lhe sonde,
entre o suave frescor dos seus verdes recamos
e a luxúria pagã que envolve cada fronde ...
Essa é a pátria encantada e longe, que sonhamos
conquistar, algum dia, ao mistério que a esconde.
Oásis que nos estende a sombra dos seus ramos
e ao grito do viandante estremece e responde ...
Vós, que andais a sonhar, pela existência em fora,
esqueci, no passado, as ilusões sepultas,
ide a esse fim do mundo onde a Esperança mora.
Ide, mas não proveis dos frutos que colherdes,
nesse reino infeliz, de esmeraldas ocultas,
nesse estranho pomar que só dá frutos verdes ...
CASSIANO RICARDO
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
tem de ser também feliz; é preciso que o aroma do
vivido esteja preservado, antes de selar-se a
garrafa da recordação. Tal como a uva não dever
ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo
que faz no momento de esmagá-la tem grande
influência no vinho, também o que foi vivido não
está em qualquer momento ou em qualquer
circunstância pronto para ser recordado ou pronto
para dar entrada na interioridade da recordação.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um
cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico.
Saõ tres os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e
noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz.
Porque a noite as usa fechadas, ao serviço do nada.
A tarde é felina criativa. Espreguiçando, mandriosa,
inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol,
em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se
vagarosa. E tomba, no desamparo do meio dia.
MIA COUTO - O FIO DAS MISSANGAS