quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Jean Raffaelli


... pois que é o belo senão o grau do terrível que só a
custo suportamosE admiramos apenas porque ele
tranqüilamente desdenha destruir-nos?

Rainer Maria Rilke

William Glackens


Então se dissiparam as trevas noturnas, e a meus olhos foi
dada a capacidade de discernir novamente a luz.
Quando os céus estão prontos a adensar-se sob a ação dos
ventos carregados de nuvens chuvosas, o sol se esconde e não
mais se vêem as estrelas, e a terra é coberta pela noite:
Mas eis que o vento boreal escapa de sua morada na Trácia
e devolve ao dia sua luz. E de repente Febo, rodeado de
esplendor, desce à terra e atinge com seus raios os olhos ofuscados.
E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; e fui

iluminado pela luz celeste e recebi o discernimento pa­ra
contemplar aquela face.
E, mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que

desde a adolescência freqüentava a minha mente: era a Filosofia.



Boécio - A Consolação da Filosofia.

Fritz Bleyl


De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido. Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas? Alguém esquecido
no fundo dos tempos? Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto? Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?
Nem eu, nem ninguém.



EMILIO MOURA

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Gustav Klimt


A Filosofia tem algo muito perigoso: ela te enche de orgulho

te torna megalomaníaco. Quando eu lia qualquer um dos

grandes filósofos, tinha a impressão de ser um deus.


EMIL CIORAN

Winslow Homer


Nós não somos mortais ao nascermos, aprendemos a sê-lo

no decorrer do caminho, em idades diferentes. Nossa infância,

que ignora até o que quer dizer fragilidade, é envolta em

imortalidade. O tempo a ignora. Nossa adolescência, ávida de

vida, desejando até envelhecer, encolhe os ombros diante da

morte, que é uma questão para velhos, a menos que escolha

vez por outra a recusa brutal, o suicídio.

Contudo, a imagem do fim, sua presença, sua insistência, à

medida que avançamos pelo caminho, vai se fazendo mais

precisa e mais densa. A partir de uma certa idade, a morte

se torna uma companhia familiar.


LU

Herbert Draper


O DIA DA IRA


As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,
a mole carne tremente entre as coxas,
vão desaparecer quando soar a trombeta.
Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram,
como árvores, como pedras,
exatos e dignos de amor.Quando o anjo passar,
o furacão ardente do seu vôo vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.



Adélia Prado

terça-feira, 27 de outubro de 2009


"Nossa maior fraqueza está em que nossos desejos

se renovam sem cessar e sem cessar recomeçamos a vida"



Montaigne

Quem sabe respirar o ar forte de meus escritos sabe que é um

ar da altitude, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão

o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, a

solidão é descomunal — mas com que tranqüilidade estão

todas as coisas à luz! Com que liberdade se respira! Quanto

se sente abaixo de si! — filosofia, tal como até agora entendi

e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas —

a procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na

existência, por tudo aquilo que até agora foi exilado pela moral.

De uma longa experiência que me foi dada por andanças pelo

proibido, aprendi a considerar as causas pelas quais até agora

se moralizou e idealizou, de modo muito diferente do que seria

desejável: a história escondida dos filósofos, a psicologia de

seus grandes nomes, veio à luz para mim.



NIETZSCHE

Jacek Yerka


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos

Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito

Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favorAs paredes que insultam devagar

Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.



ALEXANDRE O'NEILL

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Wolf Kahn


Quanto mais você raciocina, menos você cria.


RAYMOND CHANDLER

Jack Vettriano


As coisas mais importantes são as mais difíceis de dizer:

são as coisas de que nos envergonhamos, porque as

palavras as diminuem – as palavras encolhem as coisas

que parecem ilimitadas quando estão na nossa cabeça

até ficarem de tamanho real quando são deitadas cá

para fora. Mas não é só isto, pois não?

As coisas mais importantes encontram-se demasiado

perto do local onde está enterrado o nosso coração secreto,

como marcos a assinalar um tesouro que os nossos

inimigos adorariam roubar.


Stephen King

Maurice Utrillo


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.

Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
Cada poema meu diz isto,

E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.

Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes ouço passar o vento,

E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;

Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,

E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.


ALBERTO CAEIRO

domingo, 25 de outubro de 2009

Joan Miró


Sempre no mundo há esse maravilhoso equilíbrio

de beleza e repulsa, magnificência e ratos.


Ralph Waldo Emerson

Sannah Kvist


Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma
questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três
dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem
depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder.
E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para
ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se
a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto
definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso
ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me
pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que
tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete.
Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico.
Galileu, que sustentava uma verdade científica importante,
abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua
vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não
valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em
redor do outro, é-nos profundamente indiferente.


O Mito de Sísifo - Albert Camus

William Etty


TENZONE


Será que as aceitarão ?
(i.é., estas canções).
como tímida fêmea perseguida por centauros
(ou por centuriões),
Elas já vão fugindo, urrando de terror.
Ficarão comovidos pelas verossimilitudes ?

Sua estupidez é virgem, é inviolável.
Eu vos imploro, meus críticos amistosos,
Não saiais por aí procurando-me um público.
Deito-me com quem é livre em cima dos penhascos;

os recessos ocultos
Já têm ouvido o eco de meus calcanhares
na frescura da luz
e na escuridão.



EZRA POUND

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Jacek Yerka


Só conta a realidade, que os sonhos, as expectativas,

as esperanças apenas permitem definir um homem

como sonho malogrado, como esperança abortada,

como expectativa inútil.


Jean-Paul Sartre

Edvard Munch


Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito do qual,
no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço. Além do que:que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar
o inferno humano- já me aconteceu antes.
Pois sei que- em termos de nossa diária e permanente
acomodação resignada à irrealidade -essa clareza de
realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama,
Deus, porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistirdos modos possíveis.
Eu consisto, eu consisto, amém.



CLARICE LISPECTOR

Tem coragem, irmão meu? Tem valentia?

Não coragem diante de testemunhas, mas

valentia de solitário e daquele ao qual nem

mesmo um deus faz mais do que ser espectador.

As almas frias, cegas, bêbadas, não são para mim

corajosas. Tem coração aquele que conhece o medo,

mas tem somente controle sobre o medo; aquele

que olha para o abismo, mas com orgulho.

Que olha para o abismo, mas com olhos de águia

— que com garras de águia prende o abismo:

isto constitui a coragem.



Nietzsche

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Vincent van Gogh


Eu sou eu e a minha circunstância,

e se não salvo a ela não me salvo a mim.


José Ortega y Gasset

William Godward


Mas vá, contempla os testemunhos do meu discurso anterior,

não se dê o caso de nele ter faltado beleza: o Sol, quente ao

olhar e todo ele ofuscante; todos os imortais que se banham

no calor e nos raios brilhantes; a chuva em tudo sombria e

gelada; e as coisas enraizadas e sólidas que brotam da terra.

Na Cólera tudo é de diferentes formas e está separado, mas no

Amor todas as coisas se unem e se desejam umas às outras.

Delas procede tudo o que existiu, existe e existirá no futuro

- surgiram as árvores e os homens e as mulheres, as feras e

as aves e os peixes que na água se criam, e também os

deuses de longa vida, superiores em honrarias.

Pois só estes existem, mas, correndo uns através dos outros,

tomam formas diversas: de tal modo os altera a sua mistura.



Empédocles de Agrigento

David Doubilet


Que o verso seja como uma chave
Que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
Quanto fitem os olhos criado seja,
E a alma de quem ouve fique tremendo.
Inventa mundos novos e cultiva a palavra;
O adjetivo, quando não dá vida, mata.
Estamos no ciclo dos nervos.
O músculo pende,
Como lembrança, nos museus;
Mas nem por isso temos menos força:
O vigor verdadeiro
Reside na cabeça.
Por que cantais a rosa, ó Poetas!
Fazei-a florescer no poema.
Somente para nós
Vivem as coisas sob o sol.
O Poeta é um pequeno deus.



VICENTE HUIDOBRO - poeta chileno

terça-feira, 20 de outubro de 2009


Também ela é uma feiticeira. Mas enquanto Circe

transformava

os homens em porcos,

a arte transforma os animais em pessoas.




BALTASAR GRACIÁN

Paul Chabas


Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste ao fundo
e te perdeste nela e

te achaste nessa perda
deixa que a dor se exerça

agora sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize toda ilusão

que a vida só consome o que alimenta.



FERREIRA GULLAR

Fernando Botero


O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da

imagem poética que o amante vê no rosto da amada.

O amor prefere a luz das velas.

Talvez porque seja isto tudo o que desejamos da

pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos

ajude a suportar o terror da noite.



Rubem Alves - Ostra Feliz não faz Pérola

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Pauline Palmer


" Crê-se que seja uma desgraça amar sem ser correspondido.

Mas quem for realmente grande compreenderá que o

verdadeiro amor não pode ser correspondido."



EMERSON

Fujam. Guardem o método ou os métodos reconhecidos como seguros,
para caso de doença, miséria, cansaço. Partam novamente para a
aventura. Explorem o espaço, mosca que voa, cervo acuado, viandante
sempre expulso do caminho natural pelos cães de guarda que rosnam
ao redor dos lugares confortáveis. Façam o olho brilhar em todas as
direções, improvisem. Com a improvisação, a vista se surpreende.
Considerem a inquietação uma ventura, a segurança, uma pobreza.
Deixem o equilíbrio, o vazio do trilhado, percorram as baías de onde
voam as aves. essa higiene da busca nos distingue das máquinas e nos
aproxima do que o corpo sabe fazer. Mais que a mente, o corpo nos
afasta do artifício. Se vocês t~em necessidade de vitória, de lugar
previsto, de batalhas, bancos de dados ou instituições, sigam o método.
A aventura fica para o tempo e a inteligência, a saúde do pensamento,
liberdade, paz: criação de lugares imprevistos. Mas percorram os dois
caminhos, não condenem nenhum; o amante de paisagens, às vezes
precisa da auto-estrada.



MICHEL SERRES

Santiago Rusiñol


Não toques nos objetos imediatos.

A harmonia queima.

Por mais leve que seja um bule ou uma chavená,

são loucos todos os objetos.

Uma jarra com um crisântemo transparente

tem um tremor oculto.

É terrível no escuro.


Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.

A boca fica em chaga.



HERBERTO HELDER

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ludovic Piette


Os imortais são mortais; os mortais, imortais;

vivem reciprocamentesua morte e morrem

reciprocamente sua vida.


HERÁCLITO

Claude Monet


A linguagem disfarça o pensamento. E principalmente de

tal forma que, segundo a forma exterior da roupagem,

não é possível concluir sobre a forma do pensamento

disfarçado; porque a forma exterior da roupagem visa a

algo bem diferente do que permite reconhecer a forma

do corpo. Os arranjos tácitos para a compreensão da

linguagem quotidiana são de uma enorme complicação.


Ludwig Wittgenstein - 'Tratado Lógico-Filosófico'

Estou cansado de viver na minha terra natal,
Pensativo nas vastidões de trigo negro,
A minha cabana vou abandonar
E partirei como vagabundo e ladrão.

Seguirei o dia de caracóis brancos
A procurar miserável abrigo.
E o meu melhor amigo afiará
Em mim a navalha tirada da bota.

A estrada atravessa o prado
Amarela de sol e Primavera,
E aquela de quem guardo o nome
Em mim, correr-me-á da sua porta.

E voltarei então à casa paterna,
Com a alegria de outro me consolarei,
E com a manga, uma noite verde,
Da janela me enforcarei.

Os salgueiros cinzentos na cerca
Inclinarão mais ternamente a cabeça.
E enterrar-me-ão sem me lavarem
Ao som dos cães a ladrar.

E a lua há-de vaguear e vaguear,
Deixando cair ramos nos lagos,
E a Rússia como dantes viverá
A dançar e a chorar na cerca.


Sergei Yesenin - poeta russo

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


Uma mente completamente lógica é como uma faca

só com a lâmina, faz a mão que a usa sangrar.


TAGORE

William Posey


Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas
ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim,
pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não
existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que
tentei ser correto e não foram comigo.
Meu coração sangra com uma dor que não consigo
comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro
todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de
gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem
em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não
entendermos nada disso.
A única magia que existe é a nossa incompreensão.



Caio Fernando de Abreu

O olhar desloca-se para as rosas que estão
em primeiro plano, como se tivessem sido acabadas
de colher. A mulher, porém, tem outras
flores na mão; e obriga-nos a hesitar entre o pote
de onde nascem as rosas e o colo em que pousam
as flores. Trata-se de uma hesitação breve, porque logo
o seu rosto leva-nos a divagar acerca da paisagem.
Vemo-la ao fundo, num semicírculo que tem a
forma perfeita do seio que o vestido esconde, e se poderia
confundir com uma visão do paraíso se
a mulher nos aparecesse como um anjo. Mas
não tem asas; e o seu corpo empurra para longe
a transcendência, mesmo que o seu rostos e perca
numa vaga tristeza que as flores caídas acentuam.
No entanto, se em vez desse mórbido acento me fixar
no brilho das primeiras rosas, posso transferir a cor das
pétalaspara cada uma das faces, e ela levantar-se-á
com uma pose de anjo, transformando
a paisagem, ao fundo, na imagem do paraíso.


Nuno Júdice

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Tom Thonson


E há paz no caos dos meus movimentos, pernas e braços
sem equilíbrio, soltos, perdidos, desesperados.
E há silêncio no rugido que me envolve, grave, constante,
ensurdecedor. Há silêncio nas vozes, nas palmas (...) já não
tenho dúvidas. Sou forte e sereno e imortal.
Já não tenho dúvidas.


José Luís Peixoto - Cemitério de Pianos

Mark Rothko


A Mentira é a recriação de uma Verdade. O mentiroso cria ou recria.
Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é tênue e delicada.
Mas as fronteiras entre as palavras são todas tênues e delicadas.
Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer
que o jogo resulta sempre. Resulte seja o que for ou do que for.
A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende
ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso.
Pelo menos ainda.
Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou
duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela
imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de
aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não
se veja o movimento ou o espaço ou a duração.
Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém.
Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.Os construtores demolem. No lugar onde estava o sopro, pomos pedras
ou palavras: sinônimo de construção. Ou destruição. Ou ação.



Ana Hatherly

O que faz abrir a boca é o aborrecimento;

O que faz mudar de posição é o mal-estar;

O que faz não se poder mexer, é o cansaço -

Nenhuma destas coisas é o tédio.

O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo,

O mal-estar se estar vivendo, o cansaço

de ter vivido.

O tédio é a sensação física da vacuidade

Prolixa das coisas.

É a vacuidade da própria alma que sente o tédio,

O que dói. O que sente tédio está preso

Numa cela infinita.

Mas os muros da cela infinita não nos podem

Soterrar, porque não existem;

Nem nos podem sequer fazer viver

Pela dor as algemas que ninguém nos pôs.



FERNANDO PESSOA

segunda-feira, 5 de outubro de 2009


A razão é um sol severo: ilumina mas cega.


ROMAIN ROLAND

Do encontro de singularidades do contato de

universos pessoais, nasce uma gama inesgotável

de interpretações. Para existir, temos que ser

vistos, e somos visos de incontáveis maneiras,

resultantes das nossas interações com pessoas

diversas. É difícil enxergar alguém como um todo

harmonioso; vemos partes incompletas de cada

pessoa, que se mostram em cada situação específica.

Por isso, se quisermos cultivar boas relações, temos

que ter a sensatez de pesar qualidades e defeitos,

para não incidir no erro de avaliar "meia pessoa" e

condená-la por inteiro.




(LU)

Jacek Yerka


As flores riem silenciosamente.

A grama e as plantas e a floresta

inteira, riem silenciosamente.

O céu e as estrelas riem silenciosamente.

Só há ruído de fundo no universo,

e esse riso silencioso, esse ruído

inaudível que é como um eco

longínquo do aparecimento do homem

e da catástrofe do mundo real.



(JEAN BAUDRILLARD)

domingo, 4 de outubro de 2009

James P. Blair


Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair.

Conforme o chão de um é feito para o futuro e o

de outro é rabiscado para sobrevivência.


MIA COUTO - escritor moçambicano

Jacek Yerka


As sociedades frias são aquelas que reduziram ao extremo

a sua parte de história; que mantiveram num equilíbrio

constante a sua oposição ao meio ambiente natural e humano,

e as suas oposições internas. Se a extrema diversidade das

instituições estabelecidas para este fim testemunha a

plasticidade da autocriação da natureza humana, este testemunho

não parece evidente senão para o observador exterior, para

o etnólogo vindo do tempo histórico. O conformismo absoluto

das práticas sociais existentes, às quais se encontram para

sempre identificadas todas as possibilidades humanas, já não

tem outro limite exterior senão o receio de tornar a cair na

animalidade sem forma.Aqui, para continuar no humano, os

homens devem permanecer os mesmos.


Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo

Arte Naif


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cáaprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.



Affonso Romano de Sant'Anna

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Salvador Dalí


No reino do pensamento, a imprudência

constitui um método.


Gaston Bachelard

Dubois Pillet


COM OS MORTOS


Os que amei, onde estão? idos, dispersos,
Arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo esses que amei: vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.



Antero de Quental

“Texto quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido

foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado,

por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido

(a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa

de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento

perpétuo; perdido neste tecido – nesta textura – o sujeito se

desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas

secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos

neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como

uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha).”


Roland Barthes - O prazer do Texto