pelo grau de mistificação que se põe nela. Tal modelo seria a
ruína da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside
na impossibilidade de dar livre curso ao infinito de nossos
pensamentos ocultos. É porque somos todos impostores que nos
suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a
terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao
falso. Não há herói moral que não seja ou pueril, ou ineficaz, ou
inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na
fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta.
Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões
sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados
para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de
olhar cara a cara as dúvidas que concebemos timidamente sobre
nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem envergonhar-se.
A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita até o
cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres,
precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos
a um nada mais agradável: nossa constituição só tolera uma certa
dose de verdade…
EMIL CIORAN - Breviário da Decomposição
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