segunda-feira, 24 de junho de 2013


 " Uma revolução psíquica se produziu no século XX - a razão humana foi desancorada
e o conhecimento abandonou as margens do real imediato.
Não seria um anacronismo cultivarmos o gosto pelo porto seguro, pela certeza do sistema?"
 
 
 
Gaston Bachelard

"Desejo um mundo de homens e mulheres, de árvores que não falem
(porque já existe conversa demais no mundo!) de rios que levem a gente a lugares,
não rios que sejam lendas, mas rios que ponham a gente em contato com outros
homens e mulheres, com arquitetura, religião, plantas, animais - rios que tenham
barcos e nos quais os homens se afoguem, mas não se afoguem no mito e lenda
e nos livros e poeira do passado, mas no tempo e no espaço e na história.
Desejo rios que façam oceanos como Shakespeare e Dante, rios que não se sequem
no vazio do passado. Oceanos sim! Tenhamos novos oceanos que apaguem o passado,
oceanos que criem novas formações geológicas, novas vistas topográficas e
continentes estranhos, aterrizadores, oceanos que destruam e preservem ao
mesmo tempo, oceanos nos quais possamos navegar, partir para novas descobertas,
novos horizontes. Tenhamos mais oceanos, mais convulsões, mais guerras,
mais holocaustos. Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos
entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos,
loucura, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
Creio hoje mais do que nunca é preciso procurar um livro ainda que de uma só
grande página: precisamos procurar fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés,
tudo quanto contenha minério, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o corpo e a alma."
 


Henry Miller

A APRESENTAÇÃO

Penso que o próximo poema não
necessita de qualquer apresentação –
o melhor é mesmo deixar que a obra fale por si.

Talvez devesse apenas mencionar
que sempre que uso a palavra cinco,
me estou a referir àquele grupo de compositores russos
que veio a ser conhecido como “Os Cinco”,
Balakiev, Moussorgsky, Borodin – essa gente.

Ah - e Hípsicles foi um astronomo grego.
Fez algo com a circunfrência.

E é tudo, mas para que conste,
“Grimké” é Angelina Emily Grimké, a abolicionista.
“Imroz” é aquela pequena ilha perto de Dardanelos.
“Mónada” - bom, vocês sabem o que é uma mónada.

Poderá haver um pequeno problema
com mastaba, que é um desses sepulcros
egípcios sobre o solo, do género de tijolo e pedra de cal.

E estão familiarizados com helmintologia?
É a ciência das larvas.

Ah, e recordem que Phoebe Mozee
é o verdadeiro nome de Annie Oakley.

À parte disso, tudo deverá ser óbvio.
Wagga Wagga é a Nova Gales do Sul.
Riolite é aquela pedra vulcânica macia.
Que mais? Sim, meranti é um tipo de madeira, da Ásia tropical penso eu,
e Rahway é mesmo Rahway, Nova Jersey.

O resto do poema deverá ser claro.
Vou então lê-lo e deixarei que fale por si.

É sobre aquela vez que fui colher morangos silvestres.

Chama-se “Colhendo Morangos Silvestres”.

BILLY COLLINS
 

quinta-feira, 13 de junho de 2013


 " O sonho daqueles que sonham concerne àqueles que não sonham.
Desde que há sonho do outro, há perigo.
O sonho é uma terrível vontade de potência.
Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros.
Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês são pegos no sonho do outro,
vocês estão perdidos."
 
 
 
Gilles Deleuze

" Compare-se a tela em que se desenrola o filme com a tela em que
se encontra a pintura. Na primeira, a imagem se modifica; na segunda, não.
Esta última convida o observador à contemplação -  diante dela, ele pode
se deixar leva pela dinâmica de suas associações.
Diante do filme, não. Mal ele captou uma imagem e ela já se modificou.
Ela não pode ser fixada. A dinâmica de associação que ele contempla é
interrompida imediatamente pela sua modificação.
Aí reside o efeito de choque do filme que, como todo efeito de choque,
quer ser capturado por meio de maior presença de espírito."
 
 
Walter Benjamin

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem,dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão
 

terça-feira, 4 de junho de 2013

Koop Delaney
 " Antes de estudar o Zen por 30 anos, eu via montanhas como montanhas
e águas como águas. Quando eu atingi um conhecimento mais íntimo,
cheguei ao ponto em que via que as montanhas não são montanhas e
que águas não são águas.
Mas agora que adquiri mais substância, cheguei ao repouso.
Porque é exatamente que eu vejo que as montanhas
são montanhas novamente e as águas novamente águas."
 
 
 
Chiang Yuan

 “A comida, mais do que as especulações místicas, é uma maneira segura de se aproximar de um povo e de sua cultura. Já assinalei que muitos dos sabores da cozinha indiana são também os da mexicana. Contudo, há uma diferença essencial, não nos sabores senão na apresentação: a cozinha mexicana consiste em uma sucessão de pequenos pratos. Trata-se, provavelmente, de uma influência espanhola. Na cozinha europeia esta sucessão de pratos obedece a uma ordem muito precisa. É uma cozinha diacrônica, como disse Lévi-Strauss, na qual os guisados seguem um após o outro, numa espécie de marcha interrompida por breves pausas. É uma sucessão que evoca tanto o desfile militar como a procissão religiosa. O mesmo acontece com a teoria, no sentido filosófico da palavra. A cozinha europeia é uma demonstração. A cozinha mexicana obedece à mesma lógica, embora não com o mesmo rigor: é uma cozinha mestiça. Nela intervém outra estética: o contraste, por exemplo, entre o picante e o doce. É uma ordem violada ou pontuada por certo exotismo. Diferença radical: na Índia as diferentes iguarias juntam-se num único grande prato. Não há sucessão nem desfile, mas sim aglutinação e sobreposição de substâncias e de sabores: comida sincrônica. Fusão dos sabores, fusão dos tempos.”
 
 
OCTAVIO PAZ

AOS EMUDECIDOS


Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.
A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.
Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.


. Georg Trakl, poeta do expressionismo alemão.