quinta-feira, 28 de agosto de 2014


" A morte é uma mensagem; a morte fala;
o ato da morte possui sua própria semântica,
e não é indiferente saber de que maneira
um homem encontrou a morte, e em que elemento."
 
 
 
 
MILAN KUNDERA - " A Vida está em Outro Lugar"


 " A revolução e a juventude formam um par. O que a revolução pode prometer aos adultos?
A uns a desgraça, a outros seus favores. Mas esses favores não valem grande coisa,
pois só interessam à metade mais miserável da vida e trazem, junto com as vantagens,
a incerteza, uma exaustiva atividade e a perturbação dos costumes.
 
A juventude tem mais sorte: ela não é obliterada pelo erro e a revolução pode admiti-la
por inteiro sob sua proteção. A incerteza das épocas revolucionárias é para a
juventude uma vantagem, pois é o mundo dos pais que é precipitado na incerteza.
Oh, como é bonito entrar na idade adulta quando as muralhas
do mundo adulto estão desmoronando!"
 
 
 
Milan Kundera - A Vida está em Outro Lugar
Toulouse Lautrec
Em poltronas puídas, as cortesãs velhas,
Lívidas, pintadas, olhar terno e fatal,
Seduzindo e fazendo de suas orelhas
Cair um tilintar de pedras e metal;

Em redor do jogo, rostos encarquilhados,
Os lábios sem cor, as maxilas sem um dente,
Por febre infernal, os dedos congestionados,
Palpando a bolsa vazia ou o seio fremente;

Sob os sujos tetos uma fila de lustres
E de lamparinas, com a luz a projetar
Sobre as frontes medonhas de poetas ilustres
Que ali seus suores sangrentos vêm esbanjar;

Eis o negro cenário que em sonho noturno
Vi desenrolar-se sob meu olhar cioso.
Eu próprio, num canto do antro taciturno,
Me vi pensativo, frio, mudo, invejoso,

Invejando a paixão dessa gente obstinada,
Dessas velhas putas a fúnebre destreza,
Todos galhardamente dando-me a chapada,
Quer do seu orgulho, quer da sua beleza!

E meu coração assustou-se de invejar
Gente correndo p'ró abismo, alucinada,
E que, ébria do seu sangue, prefere cortejar,
Em suma, a dor à morte e o inferno ao nada!


Charles Baudelaire


 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014


A verdade é a beleza e a beleza é a verdade.
— É tudo o que há para saber, e nada mais.
John Keats
 

Às vezes penso na matéria para o livro a escrever como uma coisa que já existe:
pensamentos já pensados, diálogos já pronunciados, histórias já acontecidas, lugares e ambientes
já vistos; o livro não devia ser senão o equivalente do mundo não escrito traduzido em escrita.
Mas outras vezes julgo compreender que entre o livro a escrever e as coisas que já existem
só pode haver uma espécie de complementaridade: o livro devia ser a parte escrita do mundo
não escrito; a sua matéria devia ser o que não existe nem poderá existir senão quando for
escrito, mas cujo vazio o que existe sente obscuramente na sua imperfeição.
Vejo que seja como for, continuo a girar em torno da ideia de uma interdependência entre o
mundo não escrito e o livro que deveria escrever. É por isso que o escrever se me apresenta
como uma operação de tal peso que fico esmagado.
Ponho o olho no óculo e aponto-o para a leitora. Entre os seus olhos e a página voa uma
borboleta branca. Seja o que for que estivesse a ler, a verdade é que agora foi a borboleta a
prender a sua atenção. O mundo escrito tem o seu apogeu naquela borboleta.
O resultado para que devo tender é uma coisa precisa, íntima, leve.
Observando a jovem mulher na cadeira, deu-me uma necessidade de escrever a vista, ou seja
escrever não ela mas a sua leitura, de escrever qualquer coisa, mas pensando que tem de
passar através da leitura dela.
Agora, vendo a borboleta que pousa no livro. Queria escrever "a vista" tendo presente
a borboleta. Escrever por exemplo um crime atroz, mas que de algum modo se pareça com a
borboleta, que seja fino e leve como a borboleta. Poderia também descrever a borboleta mas
tendo presente a cena atroz de um crime, para que a borboleta se torne uma coisa assustadora.

Italo Calvino


O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir
vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto
na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim
como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro 
 

sábado, 9 de agosto de 2014


“Fosse a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que
ninguém perde outra vida que aquela que lhe tocou viver e que só se vive
aquela que se perde. Assim a mais longa e a mais curta vida se equivalem.
O presente é igual para todos, e o que se perde é, por isso mesmo, igual,
e o que se perde surge como a perda de um segundo. Com efeito, não é o
passado ou o futuro que perdemos; como poderia alguém arrebatar-nos o
que não temos?

Por isso toma sentido, a toda a hora, nestas duas coisas: primeiramente,
que tudo, desde toda a eternidade, apresenta aspecto idêntico e passa
pelos mesmos ciclos, e pouco importa assistir ao mesmo espectáculo
em duzentos anos ou toda a eternidade; depois, que tanto perde o
homem que morre carregado de anos como o que conta breves dias,
consistindo a perda no momento presente;
não se pode perder o que não se tem.”


MARCO AURÉLIO -   Pensamentos



“O soldado está convencido de que tem diante de si um espaço de
tempo infinitamente adiável antes que o matem; o ladrão, antes que o
prendam; o homem, em geral, antes que o arrebate a morte.
Esse é o amuleto que preserva os indivíduos – e às vezes os povos
– não do perigo, mas do medo ao perigo; na verdade, da crença no
perigo, motivo pelo qual o desafiam em certos casos, sem que
sejam necessariamente bravos.”


Marcel Proust - À Sombra das Raparigas em Flor


Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

FERREIRA GULLAR