terça-feira, 27 de maio de 2014


“Deixe que tudo aconteça a você,
Beleza e terror
Apenas siga em frente
Nenhum sentimento é definitivo.”



Rainer Maria Rilke

"Aqui a natureza imagina e a natureza é sábia.
Os moluscos construíram suas conchas
seguindo lições de geometria transcendente. [...]
Eles faziam sua morada no eixo de uma espiral logarítmica.
Eu diria que é uma grande obra arquitetônica. Perfeita.
Cartesianamente "clara e distinta".
Tudo bem planejado: forma, função, estética.
Os moluscos são bons arquitetos."
 
 
 
Gaston Bachelard - Poética do Espaço
 

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa
haja a vaga impressão
De que não estou na morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora
Preso à angustia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuvas ocasionais,
Estes sim, imortais
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.


Millôr Fernandes

segunda-feira, 19 de maio de 2014


"A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem
para proveito de pessoas que se conhecem mas não se massacram."
 
Paul Valéry
 

" Moda e cultura: alimento para o corpo e alimento para a alma.
Beleza exterior e beleza interior, completando e enriquecendo uma à outra.
 
Ninguém fica tão chocado com essa associação primordial entre cuidar
do exterior e cuidar do interior quanto nós, árabes. Por que? Porque,
segundo nossos intelectuais, a pessoa que cuida de seu exterior
é automaticamente superficial. E aquelas que se dedica, à cultura
deveriam automaticamente negligenciar sua aparência.
Não deveriam ter tempo para questões "triviais" como higiene, limpeza
de pele e roupas que caem bem, já que estão tão preocupadas
com sérias questões existenciais e metafísicas.
 
A ideia de dois campos, o da beleza, de um lado, e o da inteligência,
do outro, é uma armadilha, e uma armadilha que existe há muito tempo,
apesar de todos os contra-argumentos vivos que andam por aí hoje em dia.
Deveríamos exigir elegância até mesmo em livrarias."
 
 
 
JOUMANA HADDAD - "Eu Matei Sherazade"




MURO REMENDADO


Alguma coisa existe que não aprecia o muro,
Que enfia bojos de terra gelada por baixo,
E derrama as pedras superiores ao sol,
E faz buracos onde até dois podem passar abraçados.
O trabalho dos caçadores é outra coisa:
Eu cheguei depois deles e fiz a reparação
Onde não deixaram pedra sobre pedra,
Mas conseguiram pôr a lebre fora do esconderijo,
Para deleitar cães latidores. As brechas, quero dizer,
Ninguém as viu fazer ou as ouviu fazer,
Mas na época primaveril dos arranjos encontramo-as lá,
faço o meu vizinho saber para lá da colina;
E um dia encontramo-nos para percorrer a linha
E assentarmos o muro outra vez entre nós.
Mantemos o muro entre nós enquanto avançamos.
A cada um as pedras que caíram para cada um.
E algumas são formas e outras são tão como bolas
Que temos de usar um feitiço para as equilibrar:
"Fica onde estás até voltarmos as costas!"
Ficamos com os dedos ásperos de as manipular.
Oh, somente outro género de jogo ao ar livre,
Um de cada lado. Mas vai mais longe:
Aí onde se encontra, nós não precisamos de muro:
Ele é todo pinheiros e eu sou um pomar de maçãs.
As minhas macieiras nunca atravessarão
Para comer os cones sob os seus pinheiros, digo-lhe eu.
Ele só me diz, "Boas cercas fazem bons vizinhos."A primavera instiga-me e pergunto-me
Se lhe posso despertar a razão:
"Porque razão fazem bons vizinhos? Isso não é
Onde existem vacas? Mas aqui não há vacas.
Antes de construir um muro eu inquiriria para saber
O que estaria a incluir ou a excluir,
E a quem era suposto ofender.
Alguma coisa existe que não aprecia o muro,
Que o quer no chão”. Poderia dizer-lhe "duendes",
Mas não são duendes exactamente, e eu prefiro
Que ele o diga a si próprio. Vejo-o por ali,
A agarrar uma pedra com firmeza pelo topo
Em cada mão, como um antigo selvagem armado de pedras.
Move-se na escuridão e parece-me,
Não apenas a das florestas e a da sombra das árvores.
Ele não irá atrás do dito de seu pai,
Gosta de ter pensado naquilo tão bem
E diz novamente, "Boas cercas fazem bons vizinhos."


ROBERT FROST

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Stepan Rybi

" A verdadeira tragédia de todo poeta, talvez seja
a de só atingir o mundo metaforicamente,
segundo as regras de uma magia
definitivamente limitada na sua apropriação do mundo."
 
 
Pier Paolo Pasolini

" Vi as grandes raivas de Otelo, por causa de um lenço,
um simples lenço - e aqui dou matéria à meditação de psicólogos
deste e de outros continentes, pois não pude me furtar à observação
de que um lenço bastou para acender os ciúmes de Otelo
e compor a mais sublime tragédia deste mundo.
Os lenços perderam-se, hoje, são precisos os próprios lençóis;
algumas vezes nem lençóis há, e valem só as camisas."
 
 
citado por Jorge Coli em O Lenço e o Caos
 

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
a às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!
 
JORGE DE SENA