quarta-feira, 31 de agosto de 2011



As pessoas que falam muito mentem sempre,

porque acabam esgotando seu estoque de verdades.



Millôr Fernandes



O que é que se encontra no início?
O jardim ou o jardineiro?
É o jardineiro. Havendo o jardineiro, mais cedo ou mais tarde
um jardim aparecerá.
Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá.
O que é um jardineiro?
Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins.
O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro.
O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem.


RUBEM ALVES


MADRIGAIS PRIVADOS

Deste meu nome a uma árvore? Não é pouca coisa;
embora não me resigne a ficar apenas sombra, ou tronco,
abandonado num subúrbio. Eu o teu
dei a um rio, a um longo incêndio, à minha sorte
cruel, à confiança
sobre-humana com que falaste ao sapo
que saiu do esgoto, sem horror ou pena
ou exaltação, ao alento daquele poderoso
e suave lábio teu que consegue,
nomeando, criar: sapo flores relva rocha —
carvalho pronto a desfraldar-se sobre nós
quando a chuva dispersa o pólen das carnosas
pétalas de trevo e a chama se levanta.



EUGÊNIO MONTALE

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Alexandre Cabanel



" O problema do mal só perturba realmente alguns
delicados, alguns céticos, revoltados pela maneira
como o crente se conforma com ele ou escamoteia."



EMIL CIORAN

Paul Klee




" Ler é traduzir; não há duas pessoas que tenham
a mesma experiência. Um mau leitor é como
um mau tradutor: ele interpreta literalmente
quando deveria parafrasear, parafraseia quando
deveria interpretar literalmente.
No que concerne a aprender a ler bem, a erudição,
por mais valiosa que seja, é menos importante
que o instinto; alguns grandes estudiosos
são tradutores medíocres."



W. H. AUDEN



Balanço



A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

ANTONIO CÍCERO

quarta-feira, 24 de agosto de 2011



" A ciência pode classificar e nomear os órgãos
de um sabiá, mas não pode medir seus encantos."


MANOEL DE BARROS

Henri Riviere



A lógica e a antropologia acreditam, respectivamente,
que todos os males do mundo e todos os crimes da
história são decorrentes da paixão implacável pelo
pertencimento e a imitação.
A multidão dos idênticos julga e mata o diferente.
Jamais abandonamos a violência quando estamos
diante de outros homens.
Não existe método de previni-la;
só a inteligência é capaz disso.


MICHEL SERRES



Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.

Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.

Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.

Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.

Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.

SARAMAGO

segunda-feira, 22 de agosto de 2011



" ... uma vez saído da infância, não pude deixar de perceber que os belos vocábulos serviam não para designar fatos, mas para camuflar sua ausência, e que os indivíduos que supostamente deveríamos admirar eram ditadores com sangue nas mãos. Nunca dispus de um absoluto divino e perdi a fé no absoluto terrestre coletivo."


TZVETAN TODOROV


"É claro que os sentimentos de amor, carinho, solidariedade
e
compaixão trazem felicidade.
Acredito que cada um de nós tem os meios para ser feliz,
para acessar os estados caloroso e compassivo de espírito
que
traz felicidade.
Na verdade, é uma das minhas crenças fundamentais que
não somente nós inerentemente possuímos o potencial
para a compaixão, mas acredito que a natureza básica
ou subjacente
dos seres humanos é gentileza.
"




DALAI LAMA

Verlinde



Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.

Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheiamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.

Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite. embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres?
Tudo enfada Antes só sintas, coração.



FERNANDO PESSOA






sexta-feira, 19 de agosto de 2011



Vende-se anarquia para as massas; satisfação irreprimível para os raros conhecedores; morte angustiante para os fiéis amantes!

RIMBAUD



" Cada um constrói sua identidade mutante em meio
à imensa legião de pessoas com as quais se defronta.
Não se deve apenas tolerar essas pessoas,
mas aceitá-las plenamente e até mesmo convidá-las
a fazer parte dessa identidade.
Cada vida, cada eu e o tempo de cada um são construídos
como obras. Um único preceito de conduta tem valor:
construir você mesmo a vida, o corpo e a duração,
com a paciência e o sofrimento
com que se cria uma obra de arte."


(O Incandescente - Michel Serres)


Contracanto


Aqui, longe do sol, que mais farei

Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.

Mas neste débil canto há outra voz

Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.

Outro sol mais aberto me dará

Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.

José Saramago

segunda-feira, 15 de agosto de 2011



" O tempo transforma as metáforas em coisas, mas antes, muito antes,

as coisas e o próprio tempo é que foram

impiedosamente transformadas em metáforas."



NUNO RAMOS



" Frágil sobre um planeta frágil, somos parasitas de superfície.
Ameaçados cada vez mais por nossa atividade insaciável.
Belo e triste planeta vencido pelo deserto, explorado até o fundo de suas gavetas mais secretas, assaltado, atacado, esburacado, pisoteado por bilhões de indivíduos brutais, cínicos, ingratos e abusivos.
De onde o ser humano tira a sua pretensão de força e poder?
O consolo inevitável de que não estaremos mais aqui para vivenciar a catástrofe, justifica a nossa irresponsabilidade?

Nos separamos da Terra, e a transformamos em uma lixeira.
Deixaremos para os nossos filhos um planeta esgotado, podre, mas também genes, hábitos e uma mentalidade destruidora.
Nossos filhos são outros nós mesmos."






JEAN-CLAUDE CARRIÈRE




Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

MIGUEL TORGA

quarta-feira, 10 de agosto de 2011



" A mais agradável cena deixa de nos atrair se não revela novos méritos."


Nietzsche

Sarolta Ban



O que se aprende na maturidade não são coisas simples,
como adquirir habilidades e informações.
Aprende-se a não voltar a ter condutas autodestrutivas,
a não desperdiçar energia por conta da ansiedade.
Descobre-se como dominar as tensões e que o
ressentimento e a autocomiseração são duas das
drogas mais tóxicas.
Aprende-se que o mundo adora o talento, mas
recompensa o caráter. Entende-se que quase
todas as pessoas não estão a nosso favor nem contra nós,
mas absortas em si mesmas. Aprende-se, finalmente, que,
por maior que seja o nosso empenho em agradar
os demais, sempre haverá pessoas que não nos amam.
Trata-se de uma dura lição no início,
mas que no fim se mostra muito tranquilizadora.


JOHN W. GARDNER


Prazeres


O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável.

Bertold Brecht

segunda-feira, 8 de agosto de 2011



Você tem que estar preparado para se queimar
em sua própria chama:
como se renovar sem primeiro tornar cinzas?



NIETZSCHE



Externamente, o que mais se destaca nas construções japonesas, sejam elas templos, palácios ou casas populares, é o telhado e a espessa sombra reinante sob o beiral. Assim, ao construir uma residência, abrimos antes de mais nada um guarda-sol - o telhado - sobre a terra, isto é, nela projetamos um pedaço de sombra, e nesse espaço escuro e sombrio, construímos a casa. Nas casas ocidentais o telhado serve muito mais para proteger da chuva do que do sol. Se o telhado japonês é guarda-sol, o ocidental é apenas chapéu.


Como a beleza sempre se desenvolve em meio à realidade do nossos cotidiano, os antepassados japoneses, obrigados a habitar aposentos escuros, aprenderam a usar as sombras para favorecer o belo. Realmente, a beleza de um aposento japonês é apenas gradação de sombras, nada mais nada menos. O elemento de beleza primordial dos aposentos é pura e simplesmente essa dúbia luz indireta.



JUNICHIRO TANIZAKI


No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.

Apalpo, acaricio a flora negra,

e negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.

Os movimentos vivos no pretérito

enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.

Vou beijando a memória desses beijos.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

René Magritte

" Aquele que vos oprime tem só dois olhos, duas mãos, um corpo, nem mais nem menos que o mais simples dos seres. O que ele tem a mais são os meios que lhe destes para destruir-vos."


La Boétie - Discurso Sobre a Servidão Humana

Uma grande formação de pássaros cruzou o céu em sentido contrário ao dele, migrando para longe. Rebanhos inteiros fugiram quando ele chegou, pisoteando as crias. Filhotes morreram, literalmente, de susto, assim que o avistaram de longe. Vestia uma bata larga, cor de carne, e caminhava sem rumo. Os peixes do açude boiaram de barriga para cima quando estendeu as mãos em concha para beber.

Andava pela mata e pelos pastos como se fosse um ermitão, tolerado pelos fazendeiros e capatazes, que não sabiam quem ele era. Gostava de se esconder na vegetação, perto dos riachos. Uma onça o atacou ali, mas ele a matou com um simples toque em sua pata. Era assim, com um leve gesto, que extinguia as capivaras e as pacas. Para ele o vegetal parecia prata; a noite parecia ouro, luz dourada, e os pastos verdes eram vermelhos, quase rosa. Nunca comeu os animais que matava, pois só tolerava folhas e raízes moles, e seus dentes fracos não aguentariam morder a carne; nunca fez mal a outro homem. Caminhava (caminha ainda) pelos pastos intermináveis de Goiás e Tocantins sem levantar suspeita, matando de longe ou com o toque de seus dedos, levando a aftosa, a sarna e a gripe aos rebanhos.

Animais não falam, mas sabem quem ele é.

NUNO RAMOS

Que sou eu senão um grande sonho

Obscuro em face do Sonho

Senão uma grande angústia

Obscura em face da Angústia.

Quem sou eu senão a imponderável

Árvore dentro da noite imóvel,

E cujas presas remontam ao

Mais triste fundo da terra?

A quem respondo senão a ecos,

A soluços, a lamentos de vozes

Que morrem no fundo do meu

Prazer ou do meu tédio.

A quem falo senão a multidões

De símbolos errantes, cuja

Tragédia efêmera

Nenhum espírito imagina?

Vinícius de Moraes

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Agora vou embrulhar minha angústia
dentro do meu lenço. Vou amassá-la
numa bola apertada. Vou levar minha
angústia e depositá-la nas raízes sob
as faias. Vou examiná-la, pegá-la
entre meus dedos.

Virginia Woolf
Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.


E volto à normalidade como um términus de linha.



ÁLVARO DE CAMPOS

ARTE POÉTICA


Mirar o rio, que é de tempo e água,

E recordar que o tempo é outro rio,

Saber que nos perdemos como o rio

E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho

Que sonha não sonhar, sentir que a morte,

Que a nossa carne teme, é essa morte

De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo

Desses dias do homem, de seus anos,

E converter o ultraje desses anos

Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso

Um triste ouro, e assim é a poesia,

Que é imortal e pobre. A poesia

Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face

Nos observa do fundo de um espelho;

A arte deve ser como esse espelho

Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,

Chorou de amor ao avistar sua Ítaca

Humilde e verde. A arte é essa Ítaca

De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável

Que passa e fica e que é cristal de um mesmo

Heráclito inconstante que é o mesmo

E é outro, como o rio interminável.


Jorge Luis Borges