segunda-feira, 30 de setembro de 2013



" Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós."


FRANZ KAFKA


"Tentem reconstruir um diálogo de sua própria vida. O diálogo de uma briga ou o diálogo de um amor.
As situações mais caras, as mais importantes, ficam perdidas para sempre. 
O que sobra delas é seu sentido abstrato (defendi esse ponto de vista, ele um outro,
fui agressivo, ele defensivo), um ou dois detalhes, mas o concreto acústico-visual da
situação em toda a sua continuidade fica perdido.
E não apenas fica perdido, mas nem ao menos ficamos espantados com essa perda.
Ficamos resignados com a perda do concreto no tempo presente. Transformamos de
imediato o tempo presente em sua abstração. Basta contar um episódio que vivemos
a poucas horas: o diálogo se encolhe num breve resumo, o ambiente em alguns dados
gerais. Isto é válido até mesmo para as lembranças mais fortes que, como um
traumatismo, se impõe ao espírito: ficamos de tal modo fascinados por sua força que
não nos damos conta a que ponto seu conteúdo é esquemático e pobre.
Se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade, a analisamos tal qual ela aparece
em  nosso espírito, em nossa memória. Só conhecemos a realidade do tempo passado.
Não a conhecemos tal qual ela é no momento presente, no momento em que acontece,
em que é. Ora, o momento presente não se parece com sua lembrança.
A lembrança não é a negação do esquecimento, A lembrança é uma forma de esquecimento.
Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos.
Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma
só imagem concreta. E, pior ainda: que a imaginação não é capaz de socorrer
nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente,
como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta
desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória
nem com reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos."


MILAN KUNDERA

Do inquieto oceano da multidão
Veio a mim uma gota gentilmente
Suspirando:
- Eu te amo, há longo tempo
fiz uma extensa caminhada apenas
para te olhar, tocar-te,
pois não podia morrer
sem te olhar uma vez antes,
Com o meu medo de perder-te depois.

- Agora nos encontramos e olhamos,
Estamos salvos,
Retorne em paz ao oceano, meu amor,
Também sou parte do oceano, meu amor,
Não estamos assim tão separados,
Olhe a imensa curvatura,
A coesão de tudo tão perfeito!
Quanto a mim e a você,
Separa-nos o mar irresistível
Levando-nos algum tempo afastados,
Embora não possa afastar-nos sempre:
Não fique impaciente – um breve espaço –
E fique certa de que eu saúdo o ar,
A terra e o oceano,
Todos os dias ao pôr-do-sol
Por sua amada causa, meu amor.


Walt Whitman – FOLHAS DE RELVA

quarta-feira, 25 de setembro de 2013


"Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita.
Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi."


Mário de Andrade

" Para mim, filosoficamente, o presente não existe. Só o tempo passado
é que é tempo "reconhecível" - o tempo que "vem", porque "vai",
não se detém, não fica presente. Portanto, para o escritor que eu sou,
não se trata de "recuperar" o passado, e muito menos de querer fazer
dele lição do presente. O tempo vivido ( e apenas ele, do ponto de vista
humano, é tempo de fato) apresenta-se unificado ao nosso entendimento,
simultaneamente completo e em crescimento contínuo.
Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos
o produto infalível, não de um inapreensível presente."
 
 
José Saramago
 

SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul — o céu do dia —
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


ANTONIO CÍCERO

domingo, 15 de setembro de 2013


 
 " O universo flui, à deriva, como um mar cinzento e sujo,
enquanto a consciência encalhada reflete
apenas a batida monótona da maré... "
 
 
Charles Baudelaire


 " D. Quixote é a primeira grande obra do mundo moderno.
O tema do romance de Cervantes é a alma humana, só que não se trata mais
da alma caída (como na Divina Comédia, de Dante), e sim da alma alienada.
O herói é um louco, não um pecador. D. Quixote não encarna a história humana;
é uma exceção. Ele é exemplo de um modo irônico, por negação:
não é como o resto dos homens.
 
As andanças do fidalgo não são uma alegoria das peregrinações do povo eleito,
mas sim de um homem perdido e solitário.
Ninguém guia D. Quixote, e seu companheiro de aventuras
não é um vidente, mas o  míope senso comum.
 
O cavalgar do louco não obedece a nenhuma geometria nem à geografia:
é um ir e vir sem rumo e durante o qual as pousadas se transformam
 
em castelos e os jardins, em currais. A peregrinação de Quixote é uma
sucessão de tropeços e descalabros. A visão final de Dante é a divindade;
a de D. Quixote é um regresso a si mesmo, à realidade sem grandeza
do fidalgo pobre.
 
Há uma contínua oscilação entre o real e o irreal: os moinhos são
gigantes e um instante depois são moinhos de novo."
 
 
Octavio Paz - O Arco e a Lira

OS NOMES



Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome.
A carne desaparece, o nome persiste mas
Esvaziando-se de seu casto conteúdo
– Tantos gestos, palavras, silêncios –
Até que um dia sentimos,
Com uma pancada de espanto (ou de remorso?)
Que o nome querido já não nos soa como os outros.

Santinha nunca foi para mim o diminutivo de Santa.
Nem Santa nunca foi para mim a mulher sem pecado.
Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor da boca.
Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer “Meu Deus, velei-me”.

Adelaide não foi para mim Adelaide somente.
Mas Cabeleira de Berenice, Inominata, Cassiopéia.
Adelaide hoje apenas substantivo próprio feminino.
Os epitáfios também se apagam, bem sei.
Mas lentamente, porém, do que as reminiscências
Na carne, menos inviolável do que a pedra dos túmulos.


MANUEL BANDEIRA