terça-feira, 31 de janeiro de 2012

“O escritor é um sujeito
que não se conforma com o mundo
do jeito que ele é,
por isso, inventa outro.”

ARIANO SUASSUNA

Ivailo Petrov

" Tenho tanta vergonha de ser feminina,
só por causa dos homens é que sou, porque gosto deles demais.

Emancipada eu não quero ser, quer ser amada, feminina, de lindas
mãos e boca de fruta, quero um vestido longo, um vestido
branco de rendas e um cabelo macio, quero um colchão de penas,
duas escravas bem limpas e quatro amantes: um músico,
um padre, um lavrador e meu marido.
Quero comer o mundo e ficar grávida, fredericar coisas e filhos.

Depois haja celeiro, haja lugar para tanta flor e fruto.
Mesmo se eu nunca escrever um verso, como desejo com
todas as forças, eu vou morrer satisfeita.
Meu corpo parece um terreno-eu, quero dizer."


ADÉLIA PRADO

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,

Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?

Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!

Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,

Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!



ÁLVARO DE CAMPOS

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

David Eustace

"O sublime é o combustível necessário para escrever poesia."


Cristóvão Tezza
" Homero, em Ilíada, nos ensina a encarar a realidade de frente e,
para o homem, o estar à altura de sua condição, que é morrer.

A concepção homérica afasta tudo o que as religiões e as
filosofias acrescentam para dourar a pílula da vida.

Não há mais que a vida, em sua evidência de tropeçar na morte
que tudo acaba.
Morremos; nenhuma promessa de imortalidade foi feita ao homem,
nenhuma esperança que vá além dessa vida breve.

Tornar-se mortal é banir toda esperança de vida futura,
uma vida em imagem, sem carne nem sangue.
O "heleno", diz Nietzsche, "não é nem otimista nem pessimista.
Ele é essencialmente viril;
vê as coisas terríveis como elas são e não as dissimula a si".



MARCEL CONCHE
Metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Everett Shin

Amor é o primeiro tema de conversa, último objeto de consumo, primeira loucura do homem, última garantia da humanidade.

Jacques Attali
"Se estamos tratando de coisas invisíveis e desconhecidas (pois Deus está além do entendimento humano e não temos meios de provar a existência da imortalidade) por que exigirmos provas e evidências? Mesmo que o raciocínio lógico não confirmasse a necessidade de sal na comida, ainda assim tiraríamos proveito de seu uso. Poder-se-ia argumentar que o uso do sal é uma simples ilusão do paladar ou uma superstição; nem por isso o seu emprego deixaria de contribuir para o nosso bem-estar. Por que, então, privar-nos de crenças que se mostram salutares em nossas crises e dão um certo sentido a nossas vidas?"


O homem e seus símbolos - JUNG

Mariana Kalacheva

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.



JORGE LUIS BORGES

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

" A dança é um texto móvel de um discurso silencioso falado pelo corpo."


Mallarmé

Nicolaos Gyzis

Seja para querer provar seu amor, seja para se esforçar
em decifrar se o outro o ama, o sujeito apaixonado não
tem à sua disposição nenhum sistema de signos seguros.
O gesto do abraço amoroso parece realizar por um momento,
para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado.
Entretanto, no meio desse abraço infantil, surge infalivelmente
o genital; ele corta a sensualidade difusa do abraço incestuoso;
a lógica do desejo se põe em movimento, retorna o querer-possuir,
o adulto se sobrepõe à criança. Sou então dois sujeitos
ao mesmo tempo: quero a maternidade e a genitalidade
(o enamorado poderia ser definido: uma criança
com tesão retesando seu arco: como o jovem Eros).



ROLAND BARTHES

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma para sentir
A dos poetas também!



Florbela Espanca

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Luis Beltran

" O ser é um acidente do não-ser."


Paul Valéry

" Tenho avidez pelo mundo, tenho desejos fortes e definidos,
hoje de noite irei dançar e comer, não usarei o vestido azul,
mas o preto-e-branco.
Mas, ao mesmo tempo, não preciso de nada.
Não preciso sequer que uma árvore existe.
Embora, quanto aos meus desejos, às minhas paixões,
ao meu contato com a árvore, elas continuem sendo
para mim uma boca comendo.
A despersonalização como destituição da individualidade inútil
- a perda de tudo que se possa perder e ainda assim, ser."


CLARICE LISPECTOR

Alberto Sughi

O que há em mim é sobretudo cansaço -

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas -

Essas e o que falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...



FERNANDO PESSOA

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Remedios Varo

Primeiro apure os fatos. Depois, pode distorcê-los à vontade.

Mark Twain

Desde que passamos a existir, só conseguimos crescer

transformando o "verbo" em nosso alimento.

Os mais importantes dentre nós assim se tornaram por

tê-lo magnificado. Perdemos irremediavelmente a memória

de um mundo ouvido, percebido, sentido por um corpo

desprovido de linguagem. Esse animal esquecido,

desconhecido, tornou-se homem ao falar, e o "verbo"

modelou sua carne, não somente a sua carne coletiva

de mudança e de percepção, uso ou dominação,

mas também e sobretudo a sua carne corporal.


MICHEL SERRES

Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais.
É como um soprro de fogo.
É como se a despedida
Se fizesse o gozo de saber
Que há o teu todo e no meu,
Um espaço ardoroso,
Onde não vive o adeus.
Não é apenas vaidade de querer
Que tua alma e teu corpo
Se enterneçam. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.


HILDA HILST

domingo, 8 de janeiro de 2012

Michael Malm

Existência não é uma condição estável que repousa sobre si mesma,

mas um desequilíbrio perpétuo, uma total arrancada a partir de si.


Jean Paul Sartre

Leonora Carrington

Os homens são, em geral, nem muito bons, nem muito maus,

são medíocres. Há duas pessoas em cada homem, e se é

infantil ver apenas uma, é totalmente triste e injusto ver

apenas a outra.

O homem com seus vícios, suas fraquezas, suas virtudes,

sua confusa mistura de bem e de mal, de baixezas e elevações,

de honestidade e depravação, é ainda, no todo, o mais digno

objeto de investigação, de interesse, de compaixão, de afeição

e de admiração, que se pode encontrar na terra.

Como não temos anjos, não podemos apegar-nos a coisa

alguma que seja mais nobre e mais digna de devoção

do que nosso semelhante.


ALEXIS DE TOCQUEVILLE




ASSOMBROS



Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.




Afonso Romano de Sant'Anna

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Claude Theberge

Se seguirmos demais a analogia, então tudo coincide identicamente,
se a evitarmos, tudo se dispersa ao infinito.


GOETHE

Sarolta Ban

" Que peculiar privilégio possui esta pequena agitação do cérebro
a que chamamos pensamento, para que precisemos fazer dela
o modelo para todo o universo?
Nossa parcialidade em prol de nós mesmos se faz presente
em todas as ocasiões.
Só nos é conhecida - e muito imperfeitamente - uma parte
ínfima do universo, e por um intervalo muito curto de tempo.
Como então fazer uma declaração conclusiva
acerca da origem de sua totalidade?"



David Hume

Scott Prior

JANELA



Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem
macieira, diáfana em meio à luz.

Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava
uma grande macieira, carregada de fruto.

Passaram-se decerto muitos anos, mas não me
lembro de nada do que aconteceu neste sonho.




Czeslaw Milosz

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de
ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a
contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.


Livro dos Abraços
Eduardo Galeano

Os soldados e comandantes mantém ainda entre eles relações de natureza superior às que existem entre operários e patrões. Por enquanto, pelo menos, qualquer civilização de tipo militar encontra-se bem acima daquelas a que se dá o nome de industriais: estas, sob o seu aspecto atual, são a mais vulgar forma de existência que foi possível ver até hoje. Elas são regidas somente pela necessidade: quer-se viver e se vê obrigado a vender-se, mas despreza-se aquele que explora esta necessidade e que compra o operário. Singularmente, existe menos dificuldade em se submeter a pessoas poderosas que inspiram o receio, mesmo o terror, aos tiranos e aos comandantes de exército, do que a desconhecidos sem interesse, como o são todos os magnatas da indústria. Normalmente, o operário só vê no patrão um cão astuto, um vampiro que especula com todas as misérias e cujo nome, pessoa, costumes e reputação lhe são perfeitamente indiferentes. Os fabricantes e os grandes negociantes mostraram provavelmente até aos nossos dias a falta desses sinais que distinguem a raça superior, que tornam interessante uma personalidade; se tivessem tido, no olhar e no gesto, a distinção da nobreza hereditária, não haveria talvez socialismo das massas. Uma vez que as massas, no fundo, estão prontas a qualquer espécie de escravidão, desde que o chefe prove incessantemente sua legitimidade, o seu direito a comandar de nascença pela nobreza da forma. O homem mais vulgar sente que a distinção não se improvisa e que deve reverenciar nela o fruto de longos períodos do tempo; a ausência de forma e a clássica vulgaridade dos fabricantes de grandes mãos vermelhas e gordas, levam, pelo contrário, a pensar que foram unicamente o acaso e a sorte que colocaram o patrão acima do outro: muito bem! Pensa ele consigo, experimentemos também o acaso e a sorte! Lancemos os dados!... E inicia-se o socialismo.

F. W. Nietzsche, Gaia Ciência, Livro Primeiro, Aforismo 40

Claude Theberge

Se eu voltasse a nascer, e
as minhas mãos me ensinassem o caminho
que vai do coração ao mundo, e
os meus olhos me abrissem o círculo
que o mar desenha no horizonte,
e o meu nariz respirasse a luz que a manhã
solta de dentro da névoa, e os meus lábios
pedissem o pão de estrelas que as aves
trocam entre si, e os meus passos me conduzissem
para onde ninguém precisa de voltar,
o tecido da minha vida seria transparente
como o vidro da janela que não abro,
o fio que vou puxando seria eterno
como os números que contam os dias de um deus,
a tesoura da noite ficaria na caixa
que não precisei de abrir. Se eu voltasse
a nascer, e as velas do sonho me envolvessem
com o linho do seu vento.


Nuno Júdice

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Olga Naletova

"Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas

conscientes e engajadas possa mudar o mundo;

de fato, sempre foi, somente, assim que o mundo mudou."




Fritjof Capra

Gorban Michael

Eu tinha visto coisas demais suspeitas para estar feliz. Eu sabia demais e não
sabia o suficiente.
O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar
a fazer o que fizemos na véspera e já há tanto tempo, onde é que encontraremos força
para essas providências imbecis, esses mil projetos que não levam a nada,
essas tentativas de sair da opressiva necessidade, tentativas que sempre abortam,
e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível,
que é preciso cair bem embaixo da muralha, toda noite,
com a angústia desse dia seguinte, sempre mais precário, mais sórdido.
É a idade também que está chegando talvez, a traidora, e nos ameaça com o pior.
Já não temos música dentro de nós para fazer a vida dançar, é isso.
Toda a juventude já foi morrer no fim do mundo no silêncio de verdade.
E aonde ir lá fora, pergunto a vocês, quando não temos mais em nós a soma suficiente de delírio?
A verdade é uma agonia que não acaba.
A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher, morrer ou mentir.




Louis-Ferdinand Céline

Roger Job

Os que não inventaram nem a pólvora nem a bússola
Os que nunca souberam domar o vapor nem a electricidade
Os que não exploraram os mares nem o céu
mas sabem nos seus menores recantos o país do sofrimento
Os que só conheceram das viagens o desenraízamento
Os que se amansaram com genuflexões
Os que se domesticaram e cristianizaram
Os que se inocularam de degeneração

Mas aqueles sem os quais a terra não seria mais terra
gibosidade tanto mais benéfica
que
a terra deserta
Minha negritude não é uma pedra,surdez
arremessada contra o clamor do dia
Minha negritude não é uma mancha de água morta
sobre o olho morto da terra
Minha negritude não é uma torre ou uma catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Ela rompe o desânimo opaco com a sua justa paciência.


Aimé Césaire