terça-feira, 30 de março de 2010

Joaquín Sorolla

Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à

margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos,

pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser

o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos

possíveis são muitos.

FERNANDO PESSOA

William Glackens

Para fazer poesia é preciso ocupar o espírito sem estraçalhá-lo.

O perigo das palavras cruzadas é nos inocularem às vezes,

para todo o sempre, os mas estapafúrdios conhecimentos.

A matemática foi recomendada por Pinel como preservativo

dos distúrbios mentais. Que resta então?

Resta-nos um passatempo esquecido: o proveitoso, o

delicioso vício da leitura.


MARIO QUINTANA

Fantin Latour

Apesar do medo

Escolho a ousadia,

Ao conforto das algemas,

Prefiro a dura liberdade.

Voo com meu par de asas tortas,

Sem o tédio da comprovação.

...Desculpem ,mas devo dizer:

Eu quero o delírio!


LYA LUFT

quinta-feira, 25 de março de 2010

A saudade é um morcego cego

que falhou o fruto e mordeu a

noite.


MIA COUTO

Edward Cucuel

Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória.

As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas;

o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de

estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha

caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas

sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava

de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra

fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia

amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado

vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por

inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas

também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o

primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso,

casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença

imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e

noutra margem do mar, as cidades dos homens e os

seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé

de uma montanha de cume incerto, onde bem podia

haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias

que recebeu como recebia a realidade, sem indagar

se eram verdadeiras ou falsas.



JORGE LUIS BORGES

Dusanka

SENSAÇÃO DE VIVER




Que me enchas a casa de perfumes e de meias
de vidro e me quebres,
com as mais recentes bandas sonoras da vida,
o ritmo dos versos que trato de escrever,
isso posso compreendê-lo.
Compreendo
a arritmia na aritmética, o desprezo que tens
pelos Áustria, os corações vermelhos
na brancura virgem das tuas folhas,
as tuas primeiras dores de mulher,
compreendo isso tudo.
Mas não me provoques, minha filha:
não me tragas para casa tão doces miúdas de quinze anos
com olhos inexplicáveis, com olhares
ainda mais inexplicáveis. Diz-lhes que não pintem
os lábios ao meu espelho, que não te emprestem roupa.
Não metas no meu inferno esses diabos
que me tratam por senhor. Sê boa filha
e evita ao teu pai o duro lance
de morrer de amor pela tua melhor amiga.



PEDRO SEVILLA

terça-feira, 23 de março de 2010

Balthus

Esperança é como o girassol,
que à toa se vira em direção ao sol.
Mas não é à toa.
Virar-se para o sol
é um ato de realização de fé.


Clarice Lispector

Angelo Morbelli

Só em mim, o solitário, brilham interminaveis as estrelas da noite. A
fonte de pedra suspira a sua canção mágica, a mim, só a mim, o que

as sombras coloridas das nuvens errantes, movem como sonhos sobre o
campo aberto. Nem casa nem terra cultivada, nem floresta, nem
privilégios de caça me são concedidos. O que me pertence, não pertence
a ninguém, O caminho estreito, mergulhado por trás do véu dos bosques,
o mar assustador, o som de um pássaro na brincadeira das crianças, O
choro e o canto, de noite, em solidão, de um homem secretamente
apaixonado. Os templos dos deuses também são minas, e minam os bosques
aristocráticos do passado. E não menos, a abóbada luminosa do céu que é
no futuro a minha casa: Frequentemente em pleno vôo de desejo, sobem
acima as minhas tempestades de alma, para fixar no futuro de homens
benditos, amor, superando a lei, amor das pessoas às pessoas. De novo
os encontro, nobremente transformados: fazendeiro, rei, comerciante,
marinheiro ocupado, pastor e jardineiro, todos eles agradecidamente,
celebram o festival do mundo futuro. Só o poeta perde, o solitário que
olha, o portador de desejo humano, a imagem pálida da incerteza do
futuro. A realização do mundo não tem mais nenhuma necessidade. Muitas
flores Murcham na sua sepultura, mas ninguém se lembra-se dele.


HERMANN HESSE

Kurt Seligmann

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.



António Gedeão

domingo, 21 de março de 2010

Jack Vettriano

Meus gostos são simples:

prefiro o melhor de tudo.


OSCAR WILDE

Remedios Varo

Saber organizar a vida não confusamente, no tumulto dos fatos,

mas com percepção e bom senso. A vida sem descanso é dolorosa,

assim como um longo dia de viagem sem trégua.

O que torna a vida agradável é uma variedade de aprendizado.

Para uma vida bela, gaste a primeira jornada conversando com os

mortos: nascemos para conhecer e conhecer a nós mesmos,

e os livros nos transformam fielmente em pessoas.

Passe a segunda jornada com os vivos: contemple tudo o

que há de bom no mundo. Nem todas as coisas podem ser

encontradas no mesmo lugar.

A terceira jornada pertence inteiramente a você:

filosofar é o prazer mais elevado de todos.


BALTASAR GRACIÁN

Ury Lesser

DESCRIÇÃO HONESTA DE MIM PRÓPRIO BEBENDO
UM WHISKY NO AEROPORTO, DIGAMOS DE MINEÁPOLIS



Os meus ouvidos escutam cada vez menos as conversas, os meus
olhos enfraquecem, continuando porém insaciados.

Vejo as pernas delas de mini-saia, de calças,
ou de tecidos vaporosos,

Espreito cada uma, os seus rabos e coxas, pensativo,
embalado por sonhos porno.

Ó lascivo velho jarreta, estás com os pés para a cova
e não para os jogos e brincadeiras da juventude.

Mas não é verdade, faço apenas aquilo que sempre fiz,
compondo as cenas desta terra, movido pela
imaginação erótica.

Não desejo justamente estas criaturas, desejo tudo,
e elas são como um sinal de convívio extático.

Não tenho culpa de sermos feitos assim, metade de
contemplação

desinteressada e metade de apetite.

Se depois de morrer for para o Céu, lá,

terá de ser como aqui,
apenas hei-de livrar-me dos sentidos entorpecidos
e dos ossos pesados.

Transformado em puro olhar, continuarei a absorver
as proporções
do corpo humano, a cor dos lírios, a rua parisiense
na madrugada de Junho.
Enfim, toda a inconcebível, a inconcebível pluralidade
das coisas visíveis.


CZESLAW MILOSZ - Nobel 1980

quarta-feira, 17 de março de 2010

Peter Kroyer

Existe alguma benevolência, não importa quão pequena seja...

alguma partícula de pomba amassada dentro de nosso molde,

junto com os elementos do lobo e da serpente.


DAVID HUME

Pauline Palmer

A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica

conservará alguma desta liberdade e imparcialidade no mundo da ação e da emoção.

Encarará os seus propósitos e os seus desejos como partes do todo e com a falta

de persistência que resulta de os ver como fragmentos minúsculos num mundo no

qual nada mais é afetado por qualquer ação humana. A imparcialidade que na

contemplação é o desejo puro da verdade, é a mesma qualidade da mente que na

ação é a justiça e na emoção é o amor universal que pode ser dado a tudo e não

apenas aos que consideramos úteis ou dignos de admiração. Por conseguinte, a

contemplação alarga não apenas os objetos dos nossos pensamentos, mas também

os objetos das nossas ações e das nossas afecções; faz-nos cidadãos do universo e

não apenas de uma cidade murada em guerra com tudo o resto.

A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da sujeição a esperanças e

temores mesquinhos consiste nesta cidadania do universo.



BERTRAND RUSSELL

Louis Icart

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus



EUGENIO DE ANDRADE

segunda-feira, 15 de março de 2010

Patrick Cornée

Desde cedo, os mais velhos procuram mostrar aos novatos

na vida que nada resiste ao poder circunspecto da maré,

a qual não faz alarde nem estardalhaço, mas ignora o que

lhe esteja à frente e cumpre infalivelmente o seu curso,

lição que, se levada em conta, conduz a uma existência

bem menos inquieta do que ela sempre procura ser.


JOÃO UBALDO RIBEIRO

O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos, como

algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão

de ótica de sua consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão

que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao

afeto apenas pelas pessoas mais próximas.



Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão,

ampliando nosso círculo de compaixão, para que abranja todos

os seres vivos e toda a Natureza em sua beleza.


Ninguém conseguirá atingir completamente este objetivo, mas

lutar pela sua realização já é por si só, parte de nossa

libertação e o alicerce de nossa segurança interior.


ALBERT EINSTEIN

Martha Walter

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer



MIA COUTO

sexta-feira, 12 de março de 2010

Edward Hopper

Todos temos por onde sermos desprezíveis.

Cada um de nós traz consigo um crime feito

ou o crime que a alma lhe pede para fazer.



FERNANDO PESSOA


Gregory Colbert

"Como é que te chamas?"



Começo por pensar que todas as pessoas são iguais.
Talvez por comodidade, talvez por segurança, começo
por supor que todas as pessoas, na sua infinita variedade
de passados, presentes e futuros, são iguais. É partindo
desse pressuposto que digo "nós". Não o "nós" de apenas
eu e tu, não o "nós" de país ou língua, mas o "nós" meu,
teu e deles, de países e línguas, de todos aqueles que não
nos estão a ouvir. E digo: nós temos um mundo no nosso
interior. Digo: é fascinante a história de tudo aquilo que
fomos, que passou e que nunca foi esquecido porque nunca
foi identificado. Sem que nunca tenha sido arquivado de
uma forma consistente, catalogado ou sequer registado,
acabamos por chamar "caos" ou "alma" a esse mundo.
Na fila do supermercado ou numa esplanada, junho,
acabamos por chamar-lhe "pensamento". E mesmo
durante o instante em que dizemos essa palavra,
"pen-sa-men-to", somos assaltados por uma sucessão
de frases, sobrepostas às vezes, ou por imagens,
ou por melodias, ou por palavras soltas, ou por tudo isto,
sobreposto, misturado, em luta ou em harmonia.



José Luis Peixoto - escritor português

Henri Gervex

Há muito tempo já que não escrevo um poema

De amor.

E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!

A nossa natureza

Lusitana

Tem essa humana

Graça

Feiticeira

De tornar de cristal

A mais sentimental

E baça

Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo

E ninguém me deseje apaixonado,

Ou que a antiga paixão

Me mantenha calado

O coração

Num intimo pudor,

- Há muito tempo já que não escrevo um poema

De amor.



MIGUEL TORGA

quarta-feira, 10 de março de 2010

Wassily Kandinsky

Ciência é feita de fatos, como uma casa é feita de pedras, mas

um acúmulo de fatos não é mais ciência do que um monte

de pedras é uma casa.


HENRI POINCARÉ

José Canelas

É preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los,
plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar
em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca.
A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta,
mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas
da vida. A música. Este céu que nem promete chuva. Aquela
estrelinha nascendo ali... está vendo aquela estrelinha? Há milênios
não tem feito nada, não guiou os reis magos, nem os pastores, nem
os marinheiros perdidos... apenas brilha. Ninguém repara nela porque
é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está
a beleza. No inútil também está Deus.



Lygia Fagundes Telles

Johan Barthold

Não restará na noite uma estrela.

Não restará a noite.

Morrerei, e comigo a soma

do intolerável universo.

Apagarei as pirâmides, as medalhas,

os continentes e os rostos.

Apagarei a acumulação do passado.

Transformarei em pó a história, em pó o pó.

Estou mirando o último poente.

Ouço o último pássaro.

Deixo o nada a ninguém.

JORGE LUIS BORGES

domingo, 7 de março de 2010

Gilbert Abric

Condições de palácio tem qualquer terra larga,

mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?


FERNANDO PESSOA

Andrew Wyeth

Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade
e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante
existência, onde tudo o que se faz presente é
divinizado, não importando se seja bom ou mau.
E assim, é possível que o observador fique realmente
surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida
e se pergunte com qual filtro mágico no corpo
puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida
a ponto de se depararem, para onde quer que
olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal,
“pairando em doce sensualidade”,
da própria existência deles.




Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia

Leon kelly

Não é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro
nas montanhas do meu país,
No curso sinuoso dos seus rios,
Nas ondas do mar,
Nas nuvens do céu,
No corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o Universo.
O Universo curvo de Einstein.

Oscar Niemeyer


terça-feira, 2 de março de 2010

Alma Tadema

Cada falante não pode fazer mais do que tornar

coerente seu sistema de crenças, ajustando esse

sistema de modo tão racional quanto possível

às novas crenças que adquire.

DAVIDSON - filósofo da linguagem

Piet Mondrian

Em jogos de estatégia, há o uso de um ardil que

consiste no sacrifício imediato de algo valioso,

sem razão aparente, tendo em vista um objetivo

remoto. Ainda não aprendemos o poder que é

dado àquele que sabe esperar. Os orientais

dizem que em toda situação, o que atrapalha o bom

desfecho, é a nossa pressa em querer resolvê-la.

A orientação dada por eles é que devemos ir

apenas até à metade do caminho e aguardar que

os fatos se encadeiem por si próprios.

Edward Cucuel

Nem defini-la, nem achá-la, a ela -
A Beleza. No mundo não existe.
Ai de quem coma alma inda mais triste
Nos seres transitórios quer colhê-la!

Acanhe-se a alma porque não conquiste
Mais que o banal de cada cousa bela,
Ou saiba que ao ardor de querer havê-la -
À Perfeição - só a desgraça assiste.

Só quem da vida bebeu todo o vinho,
Dum trago ou não, mas sendo até o fundo,
Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;

Conhece o tédio extremo da desgraça
Que olha estupidamente o nauseabundo
Cristal inútil da vazia taça.


Fernando Pessoa