quinta-feira, 25 de março de 2010

Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória.

As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas;

o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de

estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha

caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas

sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava

de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra

fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia

amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado

vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por

inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas

também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o

primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso,

casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença

imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e

noutra margem do mar, as cidades dos homens e os

seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé

de uma montanha de cume incerto, onde bem podia

haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias

que recebeu como recebia a realidade, sem indagar

se eram verdadeiras ou falsas.



JORGE LUIS BORGES

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