domingo, 5 de dezembro de 2010

Até amanhã



Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma

à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,

um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.

De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.



Eugénio de Andrade

sábado, 4 de dezembro de 2010

"O silêncio constrói o ninho, o habitat da sensação.

Sem ele, ela não existe."



MICHEL SERRES

“Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo,

que se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e

amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens,

depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado

nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua

presunção e reconheceram a sua insignificância.

(…) Quando perguntaram ao homem mais sábio que já existiu o que ele sabia,

ele respondeu que a única coisa que sabia era que nada sabia.

A sua resposta confirma o que se diz, ou seja, que a mais vasta parcela do

que sabemos é menor que a mais diminuta parcela do que ignoramos.

Em outras palavras, aquilo que pensamos saber é parte

— e parte ínfima — da nossa ignorância.”




Michel de Montaigne - ‘Ensaios’

AS COISAS



A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.


JORGE LUIS BORGES



(Tradução de Ferreira Gullar)