segunda-feira, 19 de abril de 2010

Os episódios são como minas. A maior parte deles nunca explodem, mas chega um dia em que o mais modesto nos será fatal. Na rua, uma rapariga avançará de frente para nós, lançando-nos de longe um olhar que nos parecerá um tanto alucinado. Afrouxará progressivamente o passo, depois deter-se-á: "É mesmo você? Ando há anos à sua procura!" e saltar-nos-á ao pescoço. É a rapariga que nos caiu desmaiada nos braços no dia em que íamos ter com a mulher da nossa vida, a qual se tornou entretanto nossa mulher e mãe do nosso filho. Mas a rapariga encontrada por acaso na rua decidiu, há muito tempo, apaixonar-se pelo seu salvador, e o facto fortuito de nos ter encontrado vai parecer-lhe um sinal do destino. Telefonar-nos-á cinco vezes por dia, escrever-nos-á cartas, irá ter com a nossa mulher para lhe explicar que nos ama e que tem direitos sobre nós, até ao momento em que a mulher da nossa vida perder a paciência, fizer amor por raiva com o homem do lixo e nos deixar levando-nos o filho. Para escaparmos à rapariga apaixonada, que entretanto despejou no nosso apartamento todo o recheio dos seus armários, iremos refugiar-nos do outro lado do oceano, e por lá morreremos no desespero e na miséria. Se as nossas vidas fossem eternas como as dos deuses antigos, a noção de episódio perderia o seu sentido, porque no infinito todo o acontecimento, até o mais negligenciável, se tornaria um dia causa de um efeito, desenvolvendo-se em história.


Milan Kundera - A Imortalidade

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