sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A fluidez oceânica inundava-o de calma, de uma serena e estupenda bonança, que absorvia através do corpo imerso. Nos ouvidos apenas um som oco de mar profundo. Se meterem os ouvidos debaixo de água vão ouvir exactamente o mesmo som – cavo e imenso, oco e pouco a pouco louco. O mundo deixa a opacidade volúvel para se tornar numa esfera de insondável vácuo. Lento, mas súbito revolveu o seu centro de gravidade e iniciou o desajeitado processo de movimentação aquática que chamamos nadar. Por sua vez, ela lia-se sem se ver noutro lugar. O Sol forte que não sentia não estorvava a realidade que lia plena de uma névoa sempiterna e baça, que tudo abafava;
Aí ficam a terra e a cidade dos Cimérios,
sempre debaixo de nevoeiro e de nuvens: nunca
os contempla o sol resplandecente com os seus raios,
nem quando sobe para o céu cheio de estrelas,
nem quando regressa do céu para a terra.
Mas uma noite terrível se estende sobre os mortais infelizes.*
As preces dirigidas a Hades e Perséfone destoavam de tal forma com a primeira realidade que vos explanei, que até a nossa personagem feminina sentiu um calafrio nas costas e deixou o livro do Poeta de lado. Caminhou languidamente em direcção ao mar qual felino de grande porte sedento se acerca das águas de um rio em plena savana. Como se as nereides faltassem ao encontro marcado, olhou com uma face algo triste e melancólica para o azul impenetrável, mas acabou por nele mergulhar. A passagem do tempo forma tendencialmente coincidências absurdas, sobretudo quando a realidade é imaginada e escrita para uma folha como uma hipótese imaginária. Deste modo, o encontro (já por vós idealizado) das únicas personagens deste texto ocorreu.
*Homero, Odisseia, XI, 14-19.

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