segunda-feira, 5 de março de 2012

" Talvez espante o leitor a franqueza com que exponho e realço a minha mediocridade; advirta-se que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta da cobiça obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele não se estenda para cá, e não nos examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento.

Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados."

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

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