terça-feira, 18 de setembro de 2012

“A infância é certamente maior que a realidade. Para experimentar, através de nossa vida, o apego
que sentimos pela casa natal, o sonho é mais poderoso que os pensamentos. São os poderes
do inconsciente que fixam as mais distantes lembranças. Se não tivesse existido um centro compacto
de devaneios de repouso na casa natal, as circunstâncias tão diferentes que envolvem a vida
verdadeira teriam confundido as lembranças. Afora umas poucas medalhas coma efígie dos nossos
ancestrais, nossa memória de criança contém apenas moedas sem valor. É no plano do devaneio,
e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil.
Por essa infância permanente, preservamos a poesia do passado. Habitar oniricamente a
casa natal é mais que habitá-la pela lembrança. É viver na casa desaparecida tal
como ali sonhamos um dia.
Que privilégio de profundidade há nos devaneios de criança! Feliz a criança que possuiu, que
realmente possuiu as suas solidões! É bom, é saudável que uma criança tenha suas horas
de tédio, que conheça a dialética do brinquedo exagerado e dos tédios sem causa, do tédio puro.
Em suas Memórias, Alexandre Dumas diz que era um menino entediado, entediado até às
lágrimas. Quando sua mãe o encontrava assim chorando de tédio, perguntava-lhe:
- e por que é que Dumas está chorando?
- Dumas está chorando porque Dumas tem lágrimas – respondia o menino de seis anos.
Esta é sem dúvida uma anedota como tantas outras contadas nas Memórias.
Mas como ela marca bem o ‘tédio’ absoluto, o tédio que não é o correlativo de uma falta de
amigos para brincar! Não existem crianças que deixam o brinquedo para ir se aborrecer
num canto do sótão? Sótão dos meus tédios, quantas vezes senti tua falta quando
a vida múltipla me fazia perder o germe de toda liberdade!”

Gaston Bachelard -  A poética do Espaço

Nenhum comentário:

Postar um comentário