sexta-feira, 31 de agosto de 2012

“(...) Eu conhecia mal as mulheres, naquela época. Ainda as conheço mal, aliás.
Os homens também. Os animais também. O que conheço menos mal são minhas dores.
Penso nelas todas, todos os dias, é rápido, o pensamento vai tão depressa,
mas elas não vêm todas do pensamento. Sim, há momentos, principalmente à tarde,
em que me sinto sincretista, à maneira de Reinhold.
Que equilíbrio. Aliás, conheço mal também minhas dores.
Isso deve ser porque não sou apenas dor. Aí está a astúcia.
Então me afasto, até o espanto, até a admiração, como de um outro planeta.
Raramente, mas é o bastante. Nada cretina, a vida.
Ser apenas dor, como simplificaria as coisas! Ser todo-dolente!
Mas isso seria concorrência, e desleal. Eu lhes contarei assim mesmo,
um dia se me lembrar, e tomara que consiga, minhas estranhas dores, em detalhes,
e distinguindo-as bem, para maior clareza.
Falarei das dores do entendimento, as do coração ou afetivas,
as da alma (muito simpáticas, as da alma) e depois as do corpo,
primeiro as internas ou ocultas, depois as da superfície,
começando pelos cabelos e descendo metodicamente e sem pressa até os pés,
abrigo dos calos, cãibras, joanetes, unhas encravadas,
frieiras, pés-de-atleta e outras esquisitices."

Samuel Beckett = PRIMEIRO AMOR


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Samuel Beckett nasceu em 13 de abril de 1906 em Dublin, na Irlanda e morreu em 22 de dezembro de 1989, em Paris, na França.

É considerado um dos principais dramaturgos do século XX, tem uma vasta obra, traduzida em vários idiomas.
Filho de uma família burguesa e protestante, formou-se em literatura, italiano e francês. Em 1928 foi lecionar em Paris, onde conheceu e tornou-se amigo de James Joyce. Vinculou-se à resistência francesa durante a Segunda Guerra.
Em 1969, Beckett ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Durante a vida escreveu poemas e textos em prosa, como romances, novelas, contos e ensaios, além de textos para o teatro, o cinema, o rádio e a televisão.

Depois da peça “Esperando Godot”, é chamado, juntamente com Ionesco, fundador do teatro do absurdo.
Samuel Beckett morreu em 1989, cinco meses depois de sua esposa. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse.


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