segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"No Inverno acorda-se nesta cidade, principalmente ao domingo, ao som dos
seus inúmeros sinos, como se para lá das nossas cortinas de tule vibrasse
um gigantesco serviço de chá de porcelana, sobre uma bandeja de prata,
no céu cinzento-pérola. Abrimos a janela num gesto largo, e o quarto fica
instantaneamente inundado desta névoa exterior,
carregada de repiques, feita em parte de oxigénio húmido,
em parte de café e preces. Por muitos e por mais variados comprimidos que
tenhamos para tomar essa manhã,
sentimos que ainda não está tudo perdido. Pela mesma razão, por muito
autónomos que sejamos, por mais que tenhamos sido traídos,
por rigoroso e desanimador que seja o conhecimento que
temos de nós próprios, confiamos em que ainda haja para nós
uma esperança, ou pelo menos um futuro. Este optimismo
advém da névoa, do seu elemento de prece, em particular se
forem horas do pequeno-almoço. Em dias como esses, a cidade
adquire de fato um aspecto de porcelana, com todas as
suas cúpulas revestidas de zinco a lembrar bules ou
chávenas viradas ao contrário, e o perfil oblíquo dos
campanários a retinir como um molho de colheres
abandonadas e a esfumar-se no céu. Isto para já não falar
das gaivotas e dos pombos, ora de contornos nítidos,
ora a dissolver-se no ar. Embora este lugar seja
excelente para luas-de-mel, devo dizer que muitas
vezes tenho pensado se não deveriam também experimentar
usá-lo para os divórcios - quer os que estão em curso,
quer os já consumados. Não há melhor pano de fundo para
o dissipar de um enlevo; quer a razão esteja
ou não do seu lado, nenhum egoísta consegue
conservar por muito tempo o estrelato neste cenário de porcelana
à beira da água cristalina, pois o cenário rouba-lhe a primazia."


Joseph Brodsky  -  "Marca de Água"




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