segunda-feira, 27 de agosto de 2012

“Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas também os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas. Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa – a nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil. Esse espaço entre a vida real e os desejos e as fantasias, que exigem que seja mais rica e mais diversa, é preenchido pelos livros de ficção.
No coração de todos esses livros chameja um protesto. Quem os fabula o fez porque não pode vive-los, e quem os lê – e neles acredita, durante a leitura – encontra, em suas fantasias, os rostos e as aventuras que necessitava para ampliar sua vida. Essa é a verdade que as mentiras da ficção expressam: as mentiras que somos, as que nos consolam e que nos desagravam das nossas nostalgias e frustrações. Assim, que confiança podemos ter nos testemunhos dos romances sobre a sociedade que os produz? Esses homens eram assim? Eles o eram, no sentido de que assim queriam ser, de que assim se viam amar, sofrer e desfrutar. Essas mentiras não documentam suas vidas, mas os demônios que as sublevaram, os sonhos nos quais se embriagaram para que a vida que viviam fosse mais tolerável. Uma época não está povoada somente de seres de carne e osso, mas também de fantasmas, nos quais esses seres se transformam para romper as barreiras que os limitam e os frustram.
As mentiras dos romances nunca são gratuitas: preenchem as insuficiências da vida. Por isso, quando a vida parece plena e absoluta e, graças a uma fé que tudo justifica e absorve, os homens se conformam com seus destinos, os romances não prestam serviço algum. As culturas religiosas produzem poesia, teatro e, raras vezes, grandes romances. A ficção é uma arte de sociedades em que a fé experimenta alguma crise, em que faz falta crer em algo, onde a visão unitária, confiante e absoluta foi substituída por uma visão rachada, e por uma incerteza crescente sobre o mundo em que se vive e sobre o outro mundo. Além da amoralidade, as entranhas dos romances aninham certo ceticismo. Quando a cultura religiosa entre em crise, a vida parece escapulir dos esquemas, dogmas e preceitos que a sujeitam e se transforma em caos: esse é o momento privilegiado para a ficção. Suas ordens artificiais proporcionam refúgio, segurança, e nelas se desdobram livremente aqueles apetites e temores que a vida real incita, e não consegue saciar ou conjurar. A ficção é um sucedâneo transitório da vida. O regresso à realidade é sempre um empobrecimento brutal: a comprovação de que somos menos do que sonhamos. O que significa que, ao mesmo tempo, os livros de ficção aplacam transitoriamente a insatisfação humana e também a atiçam, esporeando os desejos e a imaginação.
Os inquisidores espanhóis compreenderam o perigo. Viver a vida que não se vive é fonte de ansiedade, um desajuste com a existência que pode se tornar rebeldia, uma atitude indócil, indisciplinada, diante do estabelecido. É compreensível, então, que os regimes que aspiram a controlar totalmente a vida desconfiem das obras de ficção, e que as submetam a censuras. Sair de si mesmo, ser outro, ainda que seja ilusoriamente, é uma maneira de ser menos escravo e de experimentar os riscos da liberdade.”


Mário Vargas Llosa -  A VERDADE DAS MENTIRAS

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